Agradeço ao convite da Zeila, com quem pude compartilhar um período de minha trajetória de formação em psicanálise, e parabenizo a Associação Livre pela iniciativa de um momento institucional tão privilegiado para partilhar o exercício diário dessa prática que exige não somente o "autorizar-se de si mesmo", mas sempre "entre pares", como nos ensinou Lacan.
Para falar sobre "o sujeito, a estrutura e a transferência", partirei de um recorte clínico. Lua, nome fictício que utilizarei para o caso, chega ao consultório dizendo "Quero conhecer seu método!" Explica que já passou por outros profissionais do campo psi, já frequentou outros consultórios, mas nunca se deitara num divã. Comparece às entrevistas marcadas, mesmo com dificuldades de minha parte de fixar um horário semanal. Paga acertadamente cada sessão, após negociar valores e se responsabilizar por dividir o pagamento das mesmas com sua mãe. Após algumas semanas, esquece-se de trazer o dinheiro. Na sequencia, desmarca uma sessão. Então, decide-se por "pagar adiantado as 4 sessões mensais" para "não correr o risco de se esquecer novamente". Segue-se o período de Copa do Mundo, de difícil manejo de horários na agenda, de reposições infindáveis...Neste período, Lua marca, desmarca, remarca, e acaba por interromper o início do tratamento, após cerca de 3 ou 4 meses de entrevistas, dizendo "não sei se é questão do método, mas não há empatia, entende?"
Em sua história, já havia buscado ajuda psicológica na infância, pois, segunda ela, "tinha dificuldades de aceitar a separação dos pais", fato ocorrido quando contava 8 anos de idade. Na adolescência, foi se consultar com um psiquiatra, que lhe deu o diagnóstico de "Transtorno border-line". Ao ser questionada sobre isso, mostra-se bem informada sobre o assunto, leu artigos, pesquisou na internet e dizia ter reconhecido em si mesma aquele diagnóstico tal qual o Manual DSM IV o descreve. Desde então, toma medicamentos prescritos pelo psiquiatra. Interrogo-a sobre como ficaria sem eles, e ela responde "muito agressiva; grito, jogo coisas na parede, quebro tudo... Principalmente quando me deixam contrariada....não tolero frustrações". E, me pede, então, a confirmação de tal diagnóstico. Que demanda é essa dirigida à analista?
Sabemos que a transferência não é uma função do analista. Cabe-nos apenas suportá-la e saber utilizá-la como "motor de cura", tal qual nos ensinara Freud. Mas, o que a determina? Por que se produz? E o que comparece na transferência?
Freud define a transferência como repetição de experiências infantis que irão determinar a forma do sujeito relacionar-se com seus objetos. Uma espécie de deslizamento do que foi vivenciado em outros tempos e espaços em direção ao analista.
Dito de outro modo, é no campo privilegiado da transferência que emerge o inconsciente do analisante, sendo o analista o alvo de um modo “estereotipado” dele encontrar satisfação pulsional, através da repetição de formas arcaicas de investimento libidinal. Freud também afirma que há uma parte que escapa e resiste à rememoração sob a forma de uma compulsão à repetição. É interessante notar que Freud (1915) declara que sem a repetição fornecida pela transferência, nada pode ser rememorado e elaborado.
Izidoro Vegh (2001,p 59), nomeia a transferência como uma "prática do desencontro", entre a repetição do mesmo e a diferença que o diz.Outro modo de dizer "o que se diga fica esquecido atrás do que se diz no que se ouve", como ensinou Lacan (Outros Escritos, 1973/2013).
Lacan tratou de diferenciar os termos transferência e repetição, que embora se articulem, são conceitos diferentes. No Seminário 11 (1964-65/1985 )utilizou-se de dois termos de Aristóteles – tychê e autômaton – para designar as duas vertentes da repetição.
O autômaton diz respeito ao retorno dos signos, a insistência da cadeia significante, é a vertente simbólica da transferência . A tychê, por outro lado, nos remete ao encontro sempre falho com o Real; está regido pela pulsão de morte e situa-se num mais além relativo ao gozo. É também a vertente de resistência da transferência, considerada por Lacan como a verdadeira repetição.
Através do autômaton, visamos a tychê, pois no discurso de cada analisante, no desfiladeiro dos significantes, procuramos o que está mais além. A reprodução da imagem de um sonho, por exemplo, já porta uma diferença no momento de seu relato: já não é mais exatamente aquele sonho, e não o será a cada vez que for recontado.
Por isso, pedimos aos nossos pacientes que nos falem das mesmas coisas tantas vezes quantas forem necessárias. Na repetição do mesmo, pode surgir a diferença, o coração do Real
Lembremos que, para Lacan (1964/1979), o sujeito se constitui a partir de sua inserção na e pela linguagem, o que se dá na relação com o outro semelhante, que se faz representante do simbólico - Outro - tesouro de significantes. Das inúmeras operações de alienação e separação, surgirá, então, um sujeito, para sempre dividido entre o que sabe e o que desconhece de si.
Para apresentar a estrutura do sujeito, Lacan propõe o nó borromeu, que na verdade é uma cadeia que enoda três anéis: Real, Simbólico e Imaginário. Essa figura faz parte da topologia lacaniana, e deve respeitar 2 condições: nenhum anel deve penetrar o outro e, se cortarmos um deles, os demais também se separam. O Simbólico é o que "cessa de não se inscrever", por efeito de nossa sujeição à linguagem e à função da palavra. O Imaginário é o que "não cessa de se inscrever", produção inesgotável de sentido que situamos na dimensão do Eu. E o Real é o que "não cessa de não se inscrever", dimensão daquilo que não pode ser imaginarizado ou simbolizado, mas que insiste. Bate sempre à nossa porta!
RSI é a "boa ordem", mas o que comparece aos nossos consultórios é uma espécie de desordem, colocada sob a forma de sintomas, de inibições ou de angústia. Ou seja, é o Simbólico entrando no Real, e produzindo sintomas; é o Imaginário entrando no campo do Simbólico, produzindo inibição, ou ainda o Real entrando no Imaginário, produzindo angústia.
É assim que o sujeito, tomado pelo sofrimento, busca ajuda. Com sua estrutura em desordem, quando algo do equilíbrio que mantinha com o gozo foi rompido. Ele sofre, quer saber a causa de seu sofrimento e supõe este saber ao analista.
No entanto, há ainda na cadeia borromeana, o lugar do "objeto a", que aparece no furo central, onde se recobrem os buracos das três dimensões RSI, um "pacotinho de gozo" como Vegh (2001) o denomina, do qual o sujeito não quer abrir mão tão facilmente. E, curar-se, colocar em ordem a estrutura RSI, exige a perda desse lugar de gozo, e não a sua restauração, como podem supor os mais desavisados...
Cabe ao analista apontar para esse lugar de gozo que detém o sujeito e o impede de levá-lo adiante na realização de seu desejo. Desejo que se mantém insatisfeito na estrutura histérica, ou impossível na neurose obsessiva, ao preço de se manter colado a esse lugar gozoso. Afinal, a escolha desse modo de gozar depende da história de cada sujeito, foi inscrita pelo Outro, pois é onde, nas palavras de Freud, o sujeito ficou fixado.
Durante as entrevistas preliminares, o analista deve exercitar a "insolência socrática", provocar o sujeito com perguntas, enigmatizar seu discurso, para que ele possa avançar para além de sua demanda inicial de ajuda para uma demanda de análise. É preciso "sacudir a estrutura", que já se encontra em desordem, para que um novo arranjo seja possível. É como se questionássemos ao sujeito "Você tem certeza de que deseja iniciar esse percurso? Pois aqui, não há promessa de felicidade!" Sacudir a estrutura, é dar ao sujeito a liberdade de escolher, é oferecer-lhe uma nova posição frente ao ponto de assujeitamento no qual se encontra.
Afinal, para que o processo de análise se inicie, não basta um pedido de se desvencilhar de um sintoma, é preciso que se instale a dinâmica da transferência, o lugar do "Sujeito Suposto Saber" endereçado ao analista. Qual seu efeito? Sabemos desde Breuer e sua paciente Ana O., que o efeito da transferência é o amor. Lacan, por sua vez, inicia o Seminário sobre a Transferência (Sem 8, 1960/1992) falando de como os analistas desconhecem o amor, e para abordar o tema se reporta ao "Banquete" de Platão.
O candidato à análise endereça a quem supõe um saber uma demanda imaginária: o que eu tenho? Por que estou sofrendo? O que isto quer dizer? Sou depressivo? Sou "border line"? (Como me questionava Lua). São demandas imaginárias de saber e de cura, verdadeiras demandas de amor.
Lacan define a transferência como "o amor que se dirige ao saber". Se não há análise possível sem a emergência do Sujeito Suposto Saber é porque ele se articula com a demanda de amor que abre o registro da transferência. Quem ama, quer reciprocidade, quer ser amado. A não resposta à demanda de amor já estava enunciada por Freud como a regra da abstinência, necessária para que a falta persista no sujeito e o incite ao trabalho analítico. O silêncio do analista faz emergir os significantes ligados à demanda inconsciente, onde o desejo se articula. Pois é no terreno da transferência que o sujeito terá que repetir sua história, ponto a ponto, confrontando-se com o desejo do Outro e a pergunta que lhe é endereçada “Que vuoi?” (Que queres?)
O analista, ao responder às demandas imaginárias de amor com o "desejo do analista", com o silêncio, ocupando o lugar de semblante de "objeto a", introduz a dissimetria fundamental da transferência, o lugar do "desencontro", pois, remete o sujeito à falta estrutural do amor.
Confirmamos diariamente na clínica que após superadas as dificuldades com a técnica da interpretação, o que irá instalar-se como única dificuldade realmente séria a ser enfrentada pelo analista, é o manejo da transferência. Por isso, Lacan insiste em dizer que se na interpretação pagamos com a palavra, na transferência pagamos com a nossa presença, com a falta-em-ser.
Nem sempre quem busca nossa ajuda está disposto a pagar o preço dessa experiência; nem todo aquele que bate à nossa porta, quer se encontrar com sua verdade inconsciente, mesmo que se diga disposto a conhecer nosso método! Como no caso de Lua que, querendo conhecer o método da psicanálise partiu frustrada por não receber o amor nem o saber de quem esperava recebê-lo ("falta empatia, entende?"), e por não receber o " leito de fazer amor" (o divã), ela resiste à regra fundamental da psicanálise. Assim, confirma sua hipótese de não receber o falo, de manter seu desejo insatisfeito, de desistir de si mesma, como tantas vezes pontuou no pouco tempo em que se manteve em entrevistas, ao preço de manter seu "pacotinho de gozo".
A transferência, assim como o inconsciente, é inesgotável. O que tem fim é a sua face enganosa de amor, a fascinação imaginária que porta a resistência. Como dizem sobre a verdade, "a resistência tarda, mas não falha", provavelmente pela cumplicidade existente entre elas. No caso de Lua, não tardou a aparecer...Podemos levantar inúmeras hipóteses a esse respeito. Mas, o propósito de trazer esse recorte clínico é refletir sobre a estrutura do sujeito, sua capacidade transferencial e sua condição de entrada em análise. Podemos dizer que é com os fios da estrutura que a transferência tece sua teia. E, como isso se dá, só podemos conhecer caso-a-caso.
Freud teria dito que a psicanálise não era um método propício para tratar a psicose. Lacan, que estabeleceu uma proximidade com o quadro da paranóia e escreveu sobre um tratamento possível para psicose, afirmando ainda que dela não devemos recuar, aponta para uma especificidade na clínica das psicoses, bem como na função transferencial nesses casos.
No que diz respeito à perversão, há um contingente considerável de psicanalistas que não fazem qualquer aposta na possibilidade de uma cura psicanalítica, já que o perverso, por ser portador de um saber sobre o gozo, não endereçaria ao analista o lugar de Sujeito Suposto Saber, não se estabelecendo, portanto, a transferência.
Contudo, também no que diz respeito ao campo das neuroses, como o que encontramos em Lua, temos que admitir que nem todos estão dispostos a pagar o preço de uma análise, pois , nem todos os que dizem querer saber, desejam um encontro com a verdade, com o Real que os habita!
REFERÊNCIAS
Freud, S. (1915) Recordar, Repetir e Elaborar. Rio de Janeiro, Imago, 1983.
Lacan, J. ( 1953-54 ). Seminário 1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
________( 1966). Escritos, A direção da cura e os princípios de seu poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Lacan, J. (1973). O Aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
Quinet, A. As 4 + 1 condições da análise. Jorge Zahar, Rio de Janeiro:1991.
Vegh, I. As Intervenções do analista. Cia Freud, Rio de Janeiro: 2001.