Um Congresso que se propõe a discutir “a Lei e a lei no fim do milênio”, me pareceu um convite irrecusável para tratar de um campo cujo terreno, embora fértil, por vezes se apresenta como um sério desafio ao meu exercício profissional. A questão central que pretendo abordar é a de interrogar o lugar que ocupa o Psicólogo dentro de uma Instituição Penal.
Um breve histórico se faz necessário neste primeiro momento. A prisão, como nos ensina Foucault em seu célebre livro “Vigiar e Punir”, 1984 se constituiu fora do aparelho judiciário, e portanto preexiste às leis penais. A intenção de tornar os indivíduos dóceis e úteis, condicionando seus corpos e seu comportamento, construindo sobre eles uma saber e um poder, criou a instituição prisão antes que a lei a definisse como pena. Desde os tempos primórdios a Igreja pregava a penitência como forma de reconhecer os próprios pecados (delitos) e de propor-se a não repetí-los (reincidência), e para isso se fazia necessário o recolhimento e o isolamento em lugares propícios ao arrependimento – penitenciais ou mosteiros- que posteriormente deram origem às prisões, nomenclatura utilizada até hoje pelo aparelho judiciário. Desde o nascimento das prisões - no final do século XVIII e princípio do século XIX- até os tempos atuais, houveram mudanças importantes neste contexto, principalmente no que se refere à inclusão da Psiquiatria no campo da criminalidade, passando a tomar um valor explicativo em relação às causas dos chamados “distúrbios morais” ou “desvios sociais” em meados do século XIX.
O pensamento positivista predominante na época aproximou as duas Ciencias : Psiquiatria e Direito, cada qual com o seu saber , sendo que muitas vezes o saber médico se sobrepõe ao jurídico, uma vez que a Psiquiatria se oferece como a medida, a análise , a avaliação que permite classificar os criminosos em imputáveis, semi-imputáveis, ou inimputáveis de acordo com a capacidade do indivíduo determinar-se de acordo com sua razão e discernimento. Portanto, a concepção de homem para o Direito apóia-se na idéia de um sujeito plenamente capaz de responsabilizar-se pelos seus atos, dotado de capacidade suficiente para seguir as regras estabelecidas socialmente, salvo os casos em que o saber médico-psiquiátrico os classifica como insanos mentalmente.
O Direito, ao sustentar a prerrogativa de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”( art 5 da Constituição Federal ) busca universalizar os seres humanos desconsiderando sua preciosa subjetividade que os torna únicos, singulares e irremediavelmente diferentes, habitados por desejos primitivos e inconscientes , que na maior parte do tempo governam seus atos e palavras, como já nos ensinava Freud no início do século XX.
A lei se faz então necessária, numa tentativa efêmera de manter a paz e a justiça entre os homens. O Direito é o organizador do laço social, na medida em que opera a lei onde a Lei não se mostra operante. “A norma jurídica não apenas descreve mas prescreve, normaliza comportamentes e dita medidas de valores sociais com o objetivo de moldar os indivíduos segundo o espírito das leis, convertendo-os em uma construção legal legitimadora de práticas político-normativas que reclamam a homogeinização dos humanos no universo jurídico dominante”( Philippi, 1984)
No entanto, ao deparar-se com a falência das estruturas sociais e do aparato legal que não consegue conter a perversidade mortífera apresentada nas ruas, nos lares, nas relações como um todo, constata-se que o homem não age plenamente consciente de seus atos, como se propõe a sustentar tal abordagem ideológica..
Sabemos que o campo da Psicologia Jurídica já tem seu "status" demarcado, sendo na maioria das vezes identificado a um lugar pericial, ou seja , a um arsenal de entrevistas e exames psicológicos que buscam traduzir o que é da ordem da subjetividade do examinando.
Historicamente, o entrelaçamento entre as duas ciências – Psicologia e Direito – restringiu o campo do conhecimento psíquico ao fornecimento de documentos que possam auxiliar o aparelho judicial em suas convicções e decisões jurídico-penais, pois a Psiquiatria se tornou um saber e uma prática sobre a loucura e o crime muito antes nque a psicologia se definiu enquanto ciência..
Decorre que ao responder à demanda judicial, o perito apresenta seus laudos ou pareceres técnicos adotando, ele próprio, uma visão positivista-cartesiana do sujeito, pois ele descreve aquilo que supõe ser a verdade do mesmo. ”A posição cartesiana do perito serve, apenas, para garantir a onipotência narcísica do profissional que acredita ser possível responder a demanda jurídica com a verdade cartesiana.”(Barros, 1997).No entanto, pode-se dizer que a descrição contida nos laudos periciais constitua-se em “pseudo-verdades”, pois ä luz da Psicanálise a verdade do sujeito é da ordem do inconsciente, e portanto se revela onde não se reconhece : nos atos falhos, nos sonhos, nos chistes, enfim, nos fenômenos lacunares de seu próprio discurso.
Como não há como dizer o sujeito em um único significante, não há como dizer a verdade em sua totalidade. Falamos aqui do sujeito do inconsciente, inaugurado por Freud, e que só aparece nas entrelinhas não podendo ser traduzido como pretende a perícia judicial.
Ëntre a lei positiva do Direito e a Lei própria do Inconsciente estabelecem-se laços que permiotem vincular o ato visível para a norma jurídica e aquela outra cena, própria do sujeito e ajena ao atuar consciwente “( Roberto Vitor Saunier)
Minha formação psicanalítica levou-me então a buscar um lugar na Instituição Penal onde a Psicanálise pudesse se sustentar oferecendo uma escuta de como nos fala o Sintoma Social – aqui entendido como ”aquele que vem dizer uma verdade inscrita no discurso social dominante.”(Melman, 1992 ).
Penso que o primeiro passo é o de nos interrogarmos sobre qual é a demanda e como respondê-la. Por um lado, a instituição nos demanda um “Tratamento Penal”, preconizado pela Lei de Execução Penal, e que tem como objetivo a ressocialização dos indivíduos criminosos, de forma a adaptá-los ao Sistema Social vigente, tornando-os dóceis e condicionando-os de forma a seguir a ideologia positivista e dogmática do Direito da igualdade dos homens perante a lei. Por outro lado, há a demanda do próprio sujeito, que se posiciona à nossa frente como aquele que perdeu seu papel social, profissional e familiar, perdeu sua autonomia, sua privacidade e convive diariamente com o risco de vida, abusos sexuais e outras práticas impostas pela massa carcerária, querendo se fazer ouvir, e como tal deve ser escutado em seu próprio discurso.
Há duas formas mais freqüentes de se responder à demanda do criminoso. Se ele é tomado como vítima desse complexo mundo social no qual vivemos, onde prevalece a violência e a miséria, que denunciam o quanto a ideologia da igualdade para todos é um engodo, estamos fadados a responder-lhe como alguém que vem assisti-lo, desconsiderando sua própria capacidade de cuidar de si mesmo, estabelecendo portanto uma relação de saber sobre aquilo que lhe falta e, consequentemente, de poder sobre o mesmo. Se, por outro lado, a tendência é a de vê-lo como um indivíduo cruel e perigoso, dominado pelas “forças do mal “, nos sentimos impotentes e nada lhe oferecendo senão sentimentos de rancor, ódio e vingança, identificados com suas vítimas. Não é difícil concluir que tais respostas referem-se a lugares fora do nosso campo profissional e a uma prática sem comprometimento ético.
Há duas formas mais freqüentes de se responder à demanda do criminoso. Se ele é tomado como vítima desse complexo mundo social no qual vivemos, onde prevalece a violência e a miséria, que denunciam o quanto a ideologia da igualdade para todos é um engodo, estamos fadados a responder-lhe como alguém que vem assisti-lo, desconsiderando sua própria capacidade de cuidar de si mesmo, estabelecendo portanto uma relação de saber sobre aquilo que lhe falta e, consequentemente, de poder sobre o mesmo. Se, por outro lado, a tendência é a de vê-lo como um indivíduo cruel e perigoso, dominado pelas “forças do mal “, nos sentimos impotentes e nada lhe oferecendo senão sentimentos de rancor, ódio e vingança, identificados com suas vítimas. Não é difícil concluir que tais respostas referem-se a lugares fora do nosso campo profissional e a uma prática sem comprometimento ético.
É lugar comum tecermos críticas sobre os efeitos nocivos do Sistema Penitenciário na personalidade dos detentos, e não há porque nos eximirmos da responsabilidade de propor respostas ao que se apresenta a nós como um sintoma social : a criminalidade que grita por uma intervenção social séria, própria de uma sociedade que tem seus valores pervertidos numa estrutura violenta e não-ética. Como escreve Calligaris : “Cada época organiza seus gozos e tem as patologias que merece. Mas é essencial, para nós, que a psicanálise continue à altura, ou seja, consiga escutar como em cada um, na sua singularidade, fala o sistema social" (Calligaris,1992).
É lugar comum tecermos críticas sobre os efeitos nocivos do Sistema Penitenciário na personalidade dos detentos, e não há porque nos eximirmos da responsabilidade de propor respostas ao que se apresenta a nós como um sintoma social : a criminalidade que grita por uma intervenção social séria, própria de uma sociedade que tem seus valores pervertidos numa estrutura violenta e não-ética. Como escreve Calligaris : “Cada época organiza seus gozos e tem as patologias que merece. Mas é essencial, para nós, que a psicanálise continue à altura, ou seja, consiga escutar como em cada um, na sua singularidade, fala o sistema social" (Calligaris,1992).
E o que a Psicanálise tem a dizer sobre isso ?
Freud pressupôs em l930 a existência da Pulsão de Morte :”O ser humano não é um ser manso, amável, na pior das hipóteses capaz de se defender se o atacam ; ao contrário, é possível atribuir a sua dotação pulsional uma boa quota de agressividade. Como conseqüência, o próximo não é somente um possível auxiliar e objeto sexual, mas uma tentação para satisfazer a agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem o seu consentimento, despojá-lo do seu patrimônio, humilhá-lo, infringir-lhe dores,martirizá-lo e assassiná-lo." (O Mal-Estar da Civilização, Freud, l930).
Em “Recordar, Repetir e elaborar”, Freud (1914) concluiu que repete-se em ato aquilo que não é possível rememorar, e em seu artigo "Além do Princípio do Prazer"(1920), o mestre da Psicanálise também escreveu a respeito da tendência à repetição associada à pulsão de morte, considerando que há uma compulsão à repetição - mais originária e mais elementar que o Princípio do Prazer - que governa o sujeito e o assujeita. É no terreno da Pulsão de Morte que aquilo que não alcançou significação insiste sob a forma de compulsão à repetição. "A repetição define tão radicalmente o pulsional, que às pulsações só resta obedecer a seu princípio.( Lachaud,l997).
Então, ali onde nos parece não haver barreiras nem recalques, nem qualquer limite; onde tudo pode ser desejado e realizável, ali onde é o lugar do acaso e da desordem, para além da linguagem e da representação, é o lugar da Pulsão de Morte.
O conceito de repetição foi considerado por Lacan , anos mais tarde, como "a insistência da cadeia significante ", considerando-a indissociável da pulsão de morte e sempre presente na transferência, embora "velada", encoberta .Para além da palavra, o recalcado insiste e se repete via transferência sendo o ato analítico, por excelência, o que permite que a repetição , através da linguagem ,encontre substituto ao ato .O lugar da escuta e o ato analítico se constituem então numa via privilegiada capaz de possibilitar ao sujeito que cometeu um crime, inscrever seu próprio ato no tempo e na história, resignificando-o e fazendo emergir um sujeito ao menos mais consciente de sua compulsão à repetição e de sua responsabilidade.
“A história é estruturante do aparelho psíquico (...), permite que o passado seja recomposto, por après-coup, no presente, possibilitando que aquilo que não encontrou simbolização no momento em que se inscreveu possa vir a ter um sentido pela recomposição das representações.”(Bleichmar, 1994).
No artigo sobre a” Psicanálise e a Criminologia “de Lacan, 1950, há indicações de um tratamento possível ao criminoso, sugerindo que “a cura não poderá ser outra coisa senão uma integração pelo sujeito de sua responsabilidade verdadeira...”, considerando-se aqui principalmente as estruturas neuróticas. Não podemos deixar de enfatizar a relevância do diagnóstico para diferenciar as naturezas do crime e sua relação com a estrutura de personalidade de seu autor. É evidente que para os casos de estruturas perversas, comumente encontradas nas Instituições Penais, a Psicanálise não se constitui como uma "possibilidade de cura", já que naqueles casos não se funda a transferência. No entanto, nos casos em que o delito constitui-se em Sintoma, próprio de uma estruturação neurótica, é possível se pensar na possibilidade de uma intervenção clínica dentro de uma instituição penal, considerando-se a possibilidade de estabelecer vínculo transferencial a partir do reconhecimento do "não-saber" por parte daquele, o qual passa a depositar no profissional o "suposto-saber" sobre suas questões mais íntimas.
Do ponto de vista juridico-penal, a pena tem uma função punitiva no sentido em que é retribuitiva do delito e proporcional à natureza e gravidade do mesmo. Todavia, a pena traz consigo também uma função ética na medida em que deve servir para o criminoso reconhecer sua culpabilidade e responsabilidade. "Apenas a Psicanálise, por saber como considerar as resistências do eu, é capaz de destacar a verdade do ato, engajando aí a responsabilidade do criminoso através de uma assunção lógica, que deve conduzi-lo à aceitação de um justo castigo”.(Lacan,1950)
O comprometimento ético da Psicanálise pode então oferecer uma possibilidade de escuta àquele que expressa no crime sua própria verdade, apontando a ele um outro lugar – o de sujeito de sua própria história- e que não mais se permita viver à deriva, ocupando um lugar de assujeitamento e alienação à identidade do criminoso por ele encarnado, o que poderá adquirir um significado maior de liberdade do que livrar-se das grades, e sim o de livrar-se de seu próprio aprisionamento que sua estrutura subjetiva lhe impõe.
Não tenho a intenção de desmerecer o trabalho dos psicólogos que emitem pareceres técnicos como subsídios a outras áreas, como o que acontece no campo jurídico-penal. Todavia, nossa responsabilidade profissional deve ir além da tarefa classificatória, sobretudo ocupando um lugar legítimo da Psicologia ao oferecer possibilidades "terapêuticas" aos indivíduos marginalizados e socialmente excluídos, questionando sempre qual a direção da cura nestes casos. Longe de se revelar como uma proposta utópica, o que a experiência tem demonstrado é que para além da miséria social e moral, o acesso à própria verdade é o que possibilita ao ser humano seu próprio crescimento.
É necessário enfatizar que minha experiência na área jurídica refere-se a instituições penais que se diferenciam muito do panorama penitenciário nacional no que se refere às condições básicas de sobrevivência, pois não há superlotação e os detentos recebem assistência social, médica, psicológica, educacional e jurídica, dentro os parâmetros da Lei de Execução Penal.
A proposta de uma reflexão sobre essa questão deve-se tão somente ao fato de que se fazemos de nossa prática um trabalho sem reflexões, não estaremos destinados a fazer sem saber porque o fazemos, numa prática sem consciência, no acaso e na desordem, tal qual aqueles a quem nos propomos assistir ?
BIBLIOGRAFIA