Que o fantasma nos proteja!

Escrito por: Valéria Codato Antonio Silva - II Jornada de Psicanálise da Letra-Associação de Psicanálise em 27/08/2016

Mais uma vez, meu ponto de partida é o momento da adolescência. Interrogada pela clínica, me debrucei sobre esse tempo de subjetivação em outros trabalhos já apresentados e publicados, e ainda hoje, mesmo após tantos anos de análise, minha própria adolescência é revisitada em meus sonhos, tece meu discurso e faz parte do meu enfrentamento com o “traumático”.

 

Adolescentes não procuram com freqüência um analista, e raramente o fazem espontaneamente. Apesar de ter uma clínica freqüentada por pacientes muito jovens, Freud pouco escreveu a respeito da adolescência, e seus seguidores privilegiaram os tempos da infância em suas pesquisas sobre o processo de subjetivação e de estruturação psíquica. Somente em tempos recentes os psicanalistas tem se dedicado a estudá-la, interrogados por um modo de subjetivação na contemporaneidade que tem problematizado essa passagem do mundo da infância para o mundo adulto.

 

Em nenhum outro momento da história a adolescência provocou tanto fascínio e temor ao mesmo tempo. Se, por um lado, há um jeito “teen” de viver que seduz adultos em torno de um ideal de jamais envelhecerem ou morrerem, numa espécie de ilusão da imortalidade e elisão da castração, por outro lado, os inúmeros acting-outs presenciados como os altos índices de violência, de suicídio, de anorexias e bulimias, da prática do “cutting”, de abuso de drogas e de transgressões dentre os jovens desafiam o meio científico e político, os saberes e os fazeres, e colocam aos psicanalistas um desafio em sua práxis. Mais do que saber “o que a psicanálise nos ensina sobre a adolescência”, temos que reformular a questão: “O que a adolescência pode ensinar a um psicanalista?

 

Longe de considerá-la como um processo natural ou fase do desenvolvimento humano, nossa concepção da adolescência a toma como um momento de “trabalho psíquico” (Rassial, 1999) ou de “crise psíquica” (Melman, 1997). Um dos tempos da subjetivação, momento-chave e determinante na estruturação subjetiva, que inclui sofrimento e angústia. 2 Lembremos que a palavra adolescência tem como raiz dolere que significa sofrer uma dor, lamentar, estar triste; adolescer significa ir em direção à dor, ao que arde, ao que queima. Silvia Amigo(2007) afirma que não há como atravessar esse tempo sem crise, e impedir o adolescente de “estar ardendo” em sua investigação sobre seu sexo e sobre seu corpo, equivale a impedir-lhe de “crescer”.

 

A partir das modificações imperativas que a puberdade produz no seu corpo, o adolescente terá, então, que atravessar um momento crítico, que para Melman (1997) trata-se de “um momento em que o sujeito não encontra o lugar de seu gozo”.

 

Já não contamos em nossa cultura atual com ritos específicos para demarcar tal passagem do infantil para o adulto, como eram próprios de outros tempos, e a adolescência de cada um se faz então, segundo uma maneira própria, segundo um rito individual que, na melhor das hipóteses se encontra balizado pelo “mito individual”, entendido por Lacan como o efeito da combinação dos significantes fundadores da subjetividade dos sujeitos neuróticos. Renunciar ao corpo infantil, aos pais da infância e à criança idealizada que foi para seus pais, introduz o sujeito numa travessia, e uma nova imagem se apresentará exigindo-lhe também o estatuto de uma nova identidade. Abandonar a imagem infantil e, definitivamente, descolar-se do lugar de objeto que supôs representar para o Outro, consiste na elaboração de um luto que o adolescente só poderá realizar a contento caso as ferramentas do simbólico e do imaginário estiverem em bom estado de funcionamento.

 

Se, para todo e qualquer adolescente é difícil simbolizar as mudanças no real do corpo, e um sintoma ou outro se faz necessário para suportar os infortúnios de assumir-se enquanto sujeito desejante e sustentar o fantasma que o anima, para alguns deles, o florescimento de inibições ou quadros graves de angústia são inevitáveis.

 

Para a criança, há uma espécie de promessa que sustenta o período de latência, ou seja, ela renuncia à atividade sexual e aceita sua condição esperando alcançar no futuro o gozo prometido (“mais tarde você poderá”, “quando você crescer...”), até que ao chegar no tempo da adolescência, a promessa se mostra enganadora, pois descobre que não basta ter o instrumento genital para exercê-lo, pois o encontro com o Outro sexo se faz de maneira muito mais complexa

 

Segundo Freud (1905), este é o momento do segundo despertar sexual, no qual a genitalidade passaria a ocupar uma posição dominante, numa combinação das pulsões parciais próprias da 3 sexualidade infantil em torno de um objeto de satisfação, que culmina com a conclusão do processo de identificação sexual iniciado na fase edípica. Estar do lado homem ou do lado mulher, definiria, então, sua inscrição no campo das neuroses, possível na medida em que o narcisismo, como condição estruturante, ofereça os instrumentos e as condições para os investimentos objetais necessários por parte do sujeito.

 

Lacan, por sua vez, no prefácio de “O Despertar da Primavera” (peça de Wedekind) assevera que nesse momento de assunção do desejo, quando os rapazes satisfazem as ideias de virilidade e as moças se posicionam como semblante de objeto, é que o encontro fracassa. Pois, quando tudo deveria contribuir para o encontro sexual, este é, entretanto, mais traumatizante, ao denunciar a castração vivenciada como catástrofe: “Não há relação entre os sexos”.

 

Sobre essa questão, Silvia Amigo (2007) afirma: “É na cobertura imaginária do novo real e na formação do campo do real do gozo como furado que costumam encastelar-se endiabradas problemas clínicos na adolescência”. São dificuldades encontradas na busca de uma nova vestimenta imaginária para encobrir o real que irrompe, exigindo-lhe a assunção de um novo corpo. Situação ainda mais problematizada quando o Outro parental nega-se a reconhecer e legitimar essa nova imagem de “grande” e “sexuado”.

 

Para Rassial (1999), a adolescência só se faz possível depois do “estadio do espelho”, pois sob o olhar do outro, o sujeito terá que se reapropiar de sua imagem, agora transformada. É sob o olhar do outro, ao mesmo tempo semelhante e pertencente ao Outro sexo, que o corpo do adolescente muda de estatuto e de valor, pois é o outro quem poderá reconhecê-lo como desejável e desejante, ao preço do sintoma sexual.

 

Lacan utiliza-se do “estadio do espelho” para descrever o tempo da subjetivação em que se dá a organização narcísica da criança ao preço da alienação à imagem do outro. A criança se deixa tomar pela imagem unificada e idealizada que recebe do outro, superando assim a experiência do corpo despedaçado, e terá que atravessá-la, para que se dê a passagem do narcisismo primário para o narcisismo secundário, de um Eu ideal a um Ideal do Eu, suportando a dor de reconhecer não ser o objeto capaz de obturar a falta no Outro. Tempo necessário para que o eu se organize separado do outro, enquanto corpo delimitado pela pele e destacado do corpo do Outro materno, formando-se um “envelope narcísico”, dimensão imaginária de nossa eksistência.

 

Contudo, para que se tenha uma representação do corpo próprio e se forme um Eu, também se faz necessária uma matriz simbólica, um significante que se articule à imagem e à significação fálica, que possibilitarão o enodamento RSI.

 

Lacan (Sem 11) apresenta o “vel da alienação” para mostrar que ao se submeter ao universo semântico do Outro, pois é ali que vai encontrar um sentido, a criança se coloca em posição de alienação, de afânise (ou desaparecimento), comparecendo apenas como objeto-coisa. É preciso uma segunda operação- separação- na qual o objeto cai, para instalar-se o representante pulsional no inconsciente da criança, e assim retornar enquanto sujeito. A separação é ao mesmo tempo o que produz a perda do objeto, e também o que produz o sujeito. Portanto, o intervalo necessário entre as demandas maternas é o tempo suficiente para que o objeto caia, a representação se inscreva, e o corpo se perca enquanto carne, inscrevendo-se no simbólico.

 

Devemos levar em conta que o destino do ser vivente dependerá do modo como o Outro materno se relaciona com o falo e a castração, pois é pelo efeito da equação falo=bebê em sua vivência edípica que uma mãe poderá ofertar à criança um lugar a ser ocupado em seu desejo. Desse modo, o gozo fálico da mãe é o que engendra o bebê na dialética da demanda e do desejo, e sob a garantia da lei da castração inscrita em seu inconsciente (-fi), a mãe se dispõe à vivência da separação, da perda do objeto, para que no intervalo entre as demandas possa novamente investi-lo na significação fálica. Se, por um lado a criança se oferece como objeto (fálico) para tapar a falta do Outro, por outro lado, o movimento pulsional da mãe deve apenas contornar o objeto e deixá-lo cair, o que abre a possibilidade de separação e de corte necessários à emergência do sujeito. Entre a significação fálica e o gozo fálico deve haver uma báscula, pois ambos são preciosos para uma estruturação

 

Balizada pelo seu saber inconsciente, portanto, uma mulher tornada mãe encontrará a lei da castração que a impedirá de um exercício nefasto da maternidade. Entretanto, uma mãe pode eternizar o que deveria ser apenas um momento de gozo e tomar seu filho como objeto de tamponamento de sua falta e, em vez de introduzir sua criança numa significação fálica, a torna prisioneira do lugar do objeto-coisa que obtura sua falta, exercendo, sem tréguas, o Gozo do Outro.

 

Nestes casos, a ausência do intervalo entre as demandas cria obstáculos ao movimento de separação e estabelece-se, assim, uma ameaça de desaparecimento da condição de subjetivação, pois é o movimento repetitivo de ausência-presença que introduz o pequeno Ser 5 no enigma “Che vuoi? Que queres de mim?” frente ao Desejo do Outro. Questão fundamental para instalação do fantasma inaugural que o manterá sustentado nas cordas do Real, do Simbólico e do Imaginário.

 

O fantasma original é a resposta encontrada pelo sujeito acerca do que o Outro deseja. Lacan registra no matema $<>a o tempo em que o sujeito cai sob o golpe do significante, ingressando na lei do desejo, ao preço de manter-se para sempre ligado e ao mesmo tempo afastado do objeto que supostamente preencheria sua falta.

 

Portanto, como nos diz Tysler (2014), o fantasma é tanto este obstáculo quanto uma proteção em face do enigma do desejo humano, de seu caráter sempre perturbador e, como o dizia Freud, impossível de ser socializado totalmente. Se por um lado o fantasma funciona como um véu que mascara o Real, ou como uma moldura que enquadra a realidade, por outro lado ele marca limites e sustenta o sujeito, prendendo-o em sua trama.

 

Se o fantasma é a resposta singular do sujeito acerca do que é o desejo do Outro, o caminho para essa questão deve estar legitimado por um Gozo do Outro que não oprima o sujeito. Se não há intervalos entre as demandas, num exercício sem tréguas desse gozo, o sujeito não poderá se perguntar pelo Desejo do Outro, a formulação do enigma fracassa bem como a instalação do fantasma.

 

É a garantia dada pelo (-fi) , falo imaginário negativado no Outro Materno que assegura a retirada do investimento de gozo no corpo infantil, produzindo a queda do objeto, a constituição do objeto a, objeto causa do desejo, furo central que permitirá a estruturação do nó borromeu – RSI- e o estabelecimento do fantasma.

 

Pois, o fantasma não é algo que venha dado pelo Outro, ainda que se deduza no campo do Outro. Poder responder ao “Che vuoi?” alcançando uma resposta mais ou menos estável, é necessário não somente o tempo da infância, da vivência edípica, mas também o tempo da adolescência, tempo de revisitar as identificações.

 

E o que podemos esperar de um adolescente frente à súbita reaparição da demanda de gozo por parte do Outro, que agora assume a figura do Outro sexo, quando seu corpo permanece apenso ao Outro Primordial por um fracasso na instalação do fantasma?

 

Para alguns adolescentes, há um destino trágico por não encontrarem o significante unário adequadamente inscrito, e uma crise psicótica será desencadeada por não contarem com as ferramentas necessárias do Simbólico e do Imaginário para elaboração do Real que irrompe 6 neste momento. Pois, quando o fantasma faz falta, como afirma Tysler (2014), o Real não pode mais encontrar sua consistência estável, ou seja, não se sustenta como o lugar do impossível.

 

Mas, devemos também pensar naquelas situações de crises subjetivas graves na adolescência, que embora não sejam psicóticas, apontam para uma legítima dificuldade de assunção de seu corpo agora transformado, e de montar uma nova vestimenta imaginária, um novo envelope narcísico que possa encobrir esse novo Real que irrompe.

 

Como esclarece Silvia Amigo (2007), diferentemente do que encontramos nas psicoses, nestes casos, a corda do simbólico sustenta-se no título S1(significante unário) já recebido, mas no que diz respeito à significação fálica e ao lugar do (-fi), se mostram mal traçados, dificultando o abandono dos objetos edípicos e a assunção de um novo modo de gozo. São casos que ela nomeia como pertencentes à “Clínica do Fracasso da Fantasia”1 , e que apresentam sua problemática entre o Real e o Imaginário.

 

Trago aqui alguns recortes clínicos de casos que considerei como fazendo parte dessa configuração de estrutura:

 

C., uma jovem excepcionalmente inteligente e muito estudiosa, começou a apresentar crises de pânico no momento de sua iniciação sexual com seu primeiro namorado, temia perder sua identidade, andava com endereço no bolso caso perdesse a referência de quem era, e telefonava para sua mãe buscando na voz do Outro seu próprio reconhecimento.

 

M., garoto educado e obediente, tinha dificuldades para usar banheiros públicos, não conseguindo se livrar de seus excrementos nas situações que julgava a permanência de um outro a lhe esperar, se preocupava excessivamente com o que os outros pensavam a seu respeito e uma inibição sexual o impedia aproximar-se das garotas

 

G., ainda buscando delimitar o fora e o dentro, forçava o vomito daquilo que comia compulsivamente, e procurou ajuda por ser a única BV(boca virgem) entre as amigas e por sentir-se feia, gorda e inadequada em sua imagem.

 

Casos clínicos como esses ilustram um corpo demasiadamente presente, cuja problemática emergiu diante da brusca vivência do segundo despertar sexual. Ao contrário daqueles casos em que a significação fálica garante saídas pela via do sintoma, num repertório metafórico-metonímico das formações do inconsciente, nestes casos é o corpo que mostra o que não pode ser veiculado pela palavra. Dentro e fora se confundem, dando lugar a crises de angústia ou ainda a um excesso de sentido que apaga o campo da diferença e mantém o sujeito no campo da inibição.

 

A saída da adolescência, para eles, se mostrou dificultada diante do encontro com o Outro sexo. Numa espécie de gozo pegajoso, de dificuldade de se lançar e se arriscar ao Gozo Fálico, sustentado na castração, vivem na permanente ameaça de serem capturados no lugar de objeto-coisa, numa submissão ao Gozo do Outro.

 

Nestes casos, o fantasma que deveria protegê-los, os assombra ao modo imaginário, posto que o objeto a sempre está a espreita...

 

“Que o fantasma nos proteja!” bem poderia ser a prece dos adolescentes. Forma de apelo ao pai que, mesmo não sendo mencionado ao logo da minha apresentação, esteve presente do início ao fim, já que sua função é o que sustenta desde o início o lugar da castração e a perda de gozo que permitem o acesso ao campo do desejo e a estruturação do sujeito. E quanto a nós analistas? Como diz Lacan (1959): “O que se trata de analisar é o fantasma, sem compreendê-lo, quer dizer, descobrindo-lhe a estrutura que revela” (Seminário O desejo e sua Interpretação, Lição 9, p.180)

 

Pois, é preciso que o fazer analítico possa ir além do deciframento do inconsciente, de modo a operar sobre as cordas do simbólico e do imaginário para que o Real ocupe o seu lugar e assegure ao sujeito a liberdade de se arriscar nos domínios do gozo fálico, onde sexualidade e morte conjugam-se na vida. Apostamos que o adolescente possa extrair de sua análise uma bússola para essa travessia!

 

REFERÊNCIAS

Amigo. S. Clínica dos fracassos da fantasia. RJ: Cia Freud, 2007.

Freud, S.(1905) Três Ensaios sobre a Sexualidade. RJ: Imago, 1986.

Lacan, J. Escritos. RJ: Jorge Zahar, 1998.

Lacan,J. Outros Escritos. RJ, Jorge Zahar,2003

Lacan, J. Seminário V. O desejo e sua Interpretação. Publicação não comercial. Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2002

Lacan, J. Seminário XI. Os quatro conceitos Fundamentais. Jorge Zahar, RJ,

Rassial, J.J. O adolescente e o Psicanalista. RJ: Cia de Freud,1999.

Silva, V.C.A. Garota Interrompida. Acessível em http:www.letra-psicanalise.com.br

Tysler, Jean-Jacques. O Fantasma na Clínica Psicanalítica. Association Lacanienne Internacionale. Trad. Letícia P. Fonseca. Recife, 2014.