O adolescente, entre a Lei e as leis

Escrito por: Valéria Codato Antonio Silva em 30/04/2013

Para abordar a problemática enfrentada pelo adolescente frente à Lei e às leis, inicio com um poema de Carlos Alberto Neves, poeta nascido em Itabuna-BA, que cometeu suicídio aos 21 anos, após 3 anos internado por medida sócio-educativa, em virtude de um homicídio que cometeu aos 17 anos.

 

Menino do Mundo

Lá vem descendo a ladeira,

O menino do mundo que de tudo se queixa.

Menino triste, nunca se encontra

Vive vagando pelo mundo sem eira nem beira.

Derramo-me em lágrimas

Quando vejo o pobre menino do mundo descendo a ladeira.

Menino de rua,

Maltrapilho, marginal...trombadinha

Assim o tratam quando pede esmola, prato de comida

Porque está passando mal.

Menino do mundo!

De um mundo cruel.

Mais uma inocente criança na estrada do nada

Que não provará o doce do mel

Só o cruel e amargo gosto do fel!

Isso é fato, não é sonho

É história real.

Menino do mundo!

Futuro marginal...

(Neves, 2006)

 

 

Não conheci Carlos Alberto pessoalmente, tive contato com parte de sua história e de sua poesia apenas por meio de uma publicação sobre o caso. Tomei-o emprestado para as reflexões que pretendo aqui abordar.

 

No discurso jurídico e social dominantes, o adolescente que transgride as normas e as leis sociais deve ser “endireitado” ou “corrigido”. Ao ser considerado autor de um ato infracional, ele é visto como alguém plenamente consciente de seus atos, que deverá assumir as conseqüências dos mesmos e receber as devidas punições. Contudo, desconsidera-se por completo a experiência subjetiva que sustenta seu ato e sua autoria. Afinal, sabemos que todo ato tem valor significante, vem no lugar de um dizer e pode ser escutado e interpretado. Além do mais, sua condição de adolescente também merece considerações importantes.

 

Para a psicanálise, a adolescência deve ser considerada um “trabalho psíquico” (Rassial,1999). Não se trata de efeitos da natureza ou dos hormônios, mas de uma busca subjetiva que inclui sofrimento e angústia, presentes no próprio termo “adolescência”, que tem como raiz dolere, cujo significado é sofrer uma dor, lamentar, estar triste. Adolescer, portanto, significa ir em direção à dor, ao que arde, ao que queima.

 

Renunciar ao corpo infantil, aos pais da infância e à criança idealizada que foi para seus pais, introduz o sujeito num momento crítico de travessia. Uma nova imagem se apresentará exigindo-lhe também o estatuto de uma nova identidade. Abandonar a imagem infantil e, definitivamente, descolar-se do lugar de objeto imaginário que supõe representar para o Outro, consiste na elaboração de um luto que o adolescente só poderá realizar a contento caso as ferramentas do simbólico e do imaginário estiverem em bom estado de funcionamento.

 

Cada adolescência é única e deve ser escutada em sua singularidade. Inúmeras manifestações de sintomas, inibições e angústia são esperadas nesta busca de uma nova identidade e elaboração de lutos. Se para qualquer adolescente é difícil simbolizar as mudanças no real do corpo, para alguns deles, a vivência de uma dor narcísica insuportável pode provocar o florescimento de quadros graves de angústia, acting-outs e até mesmo passagens ao ato.

 

Temos ainda que levar em conta que já não há em nossas sociedades ritos iniciáticos que em outras épocas marcavam essa passagem do mundo da infância para o mundo adulto. Hoje, uma série infindável de legislações busca delimitar a maioridade legal bem como assegurar proteção, direitos e deveres aos adolescentes, mas em seu bojo marcam, contraditoriamente, a inconsistência e as contradições presentes nas leis. Revela-se assim, esta espécie de fragilidade no campo social, que deveria, paradoxalmente, garantir uma ancoragem simbólica para o sujeito.

 

Como resposta, presenciamos cenas onde o adolescente, por uma via de questionamento das leis e da organização social, e por vezes, numa tentativa forçada de fundar um lugar de pertença e reconhecimento, envereda-se pelo campo dos acting-outs, como podemos encontrar numa série de contestações, pichações e atos de rebeldia contra as instituições e figuras de autoridade, até episódios mais graves de delinqüência e violência.

 

Lembremos as palavras de Rassial (1999) ao argumentar que o adolescente “busca um outro lugar, outro espaço que não o espaço cotidiano onde o sujeito não tem lugar simbolizado”.Um desalojamento do lugar social e familiar imposto, cuja expressão, por vezes, é interpretada como infração.

 

Para Melman (1992), o delinqüente busca avidamente por “fazer-se sujeito”, num movimento impulsivo constante, dada a precariedade de suas referências simbólicas:

 

“As condutas do delinqüente são simbólicas de uma falta, e de uma falta essencial, uma vez que é a falta de acesso ao objeto que conta [...] Trata-se de uma falta a esse objeto que comanda o gozo, isto é, ao falo. É, portanto, precisamente a falta de tomada pela ordem simbólica, na medida em que esta dá acesso a este objeto essencial, que não deixa ao delinqüente outro recurso que não seja o do rapto, da apreensão violenta, da violação.” (p.44)

 

A falta de acesso ao objeto fálico põe em causa a função Nome-do-Pai, ou seja, a relação do sujeito com a Lei e a castração. Para a psicanálise, a Lei fundante e estruturante é a Lei simbólica, Lei do Pai, nom-du-père conforme indicou Lacan, tendo no pai seu representante. Pois, desde Freud, sabemos que o pai é aquele elemento terceiro que separa o filho e a mãe, ao proibir o incesto e impedir o filho de gozar sexualmente de sua mãe, e esta de utilizar-se de seu produto como objeto de seu gozo. Portanto, é a função paterna que opera a castração ao limitar o gozo aspirante, e introduzir a Lei, a dimensão do desejo e o gozo fálico.

 

A posição do sujeito diante da castração será decisiva para sua vida coletiva, pois depende da internalização da Lei para que se submeta às leis e à ordem social. Portanto, há Lei e há leis. A Lei simbólica que rege os homens como seres habitados pela linguagem (Par-lêtres) e as leis que os homens estabelecem como tentativa de organizar a vida em sociedade.

 

Nos adolescentes infratores, encontramos uma forma de apelo à Lei, ao Pai, por não terem contado em sua história com um atributo fálico paterno que os libertasse da posição de objeto de gozo. Faltou-lhes uma versão paterna que, por meio da castração simbólica e da operação da Lei, assegurasse seu ingresso no mundo da cultura, das regras, do convívio social e das leis.

 

Melman (1992) esclarece que nesses casos, o Nome-do-Pai não se encontra forcluído, como nas psicoses, ou renegado, como nas perversões, mas, é o sujeito que se encontra forcluído em relação ao mesmo, ou seja, não se encontra numa posição de reconhecimento por ele, não podendo fazer valer-se pela sua filiação e autoridade, que lhe daria acesso à transmissão do gozo fálico.

 

Assim, numa tentativa atroz de se fazer ouvir, e por que não dizer, de se fazer olhar pelo outro, aparece a violência como forma de subsistir como sujeito, recusando-se ao lugar de objeto-coisificado. Nas palavras de Melman (2003, p. 69): “a violência surge a partir do momento em que as palavras não têm mais eficácia”. Tentativa dilacerada de manter o mínimo de subjetividade e resistir ao processo de mortificação ou objetalização ao qual ele se vê convocado, mesmo que tal movimento ponha em risco sua própria vida ou a de um outro.

Não foi assim que aconteceu com Carlos Alberto, o poeta?

Incumbido, por encomenda, de assassinar um sujeito, “equivocou-se” e acabou por matar um outro sujeito que passava pelo local. Equívoco instigante...Não temos elementos de sua história suficientes para analisá-lo, mas me arrisco a pensar num grande ato falho, fruto das formações do inconsciente.

 

O adolescente já apresentava um histórico de atos infracionais anteriores, sem, contudo, ter recebido qualquer medida punitiva ou sócio-educativa até então. Uma série de acting-outs encenava aquilo que suas palavras não podiam dizer, até que num ato falho se inscreve algo do Real que “não cessa de não se inscrever”, se fazendo então representar por um ato-falho homicida. Representação que posteriormente comparece numa “cena poética”, quando em seus versos apresenta um jovem que, aturdido, contemplava o corpo moribundo de uma mulher. Poesia que declama diante de outros adolescentes e de técnicos da instituição onde cumpria a medida sócio-educativa, numa quase encenação de seu ato.

 

Entre cenas e palavras, foi no decorrer do tempo em que esteve internado que buscou significar sua vida e seu ato por meio da poesia. Da letra à escritura, o simbólico ganhou força até que conseguisse sua liberdade. Contudo, após sua saída da instituição, seus poemas remetem à vivência de “desilusão, desengano, solidão e desesperança que tomava conta de sua vida” (Chaves e Rabinovitch, 2010), conforme podemos escutar nos versos escritos dias antes de seu suicídio:

 

“Estou vagando sem rumo nem intuito,

Sem lágrimas nem soluços,

Apenas mais um ser vazio, tomado pelo pessimismo.

Talvez, uma marionete querendo ter vida própria.

E minha face agora louca é lavada pela chuva,

Perdi o prazer de buscar no sossego da vida a alegria ilusória.”

(poema não publicado, sem título, escrito em 22 de setembro de 2006)

 

Também neste período pós-instituição, seja por um lapso de linguagem (inconsciente) ou por uma ironia conscientemente declarada, Carlos Alberto informa seu endereço equivocadamente (seria mais um equívoco?) ao mencionar ‘Rua do Desengano’ em substituição à ‘Travessa da Boa Esperança’.

 

Da esperança sobrou o desengano. Desenganar-se é perder a condição humana sustentada pelo encobrimento imaginário e a rede simbólica que se encarregam do engano que toda experiência humana carece diante do Real.

 

‘Rua do Desengano’ aponta para o que Lacan afirmou sobre a Angústia (Seminário 10): o afeto que não engana! Nada sabemos de sua história e de seu mito originário para aventurarmo-nos na compreensão do caso. No entanto, sabemos que inúmeros acting-outs marcaram sua adolescência sob a roupagem de atos infracionais de menor gravidade, numa mostração endereçada ao Outro, como nos diz Lacan no Seminário X, e que revela sua angústia.

 

De cena em cena, algo se mostra até que se fizesse representar pelo ato-falho- homicida

 

Após a internação, sucedeu-se uma série discursiva em que, por meio de seus poemas, de significante em significante, fazendo borda no Real, buscava o significado de sua existência e de seus atos. Deu à sua obra o nome de “Um Novo Horizonte”, indicando o fio de esperança e a promessa de vida futura mantidos pelo seu encontro com a arte. No entanto, a vivência em liberdade colocou-o diante de um afeto que não engana – a angústia – vivência de uma certeza que jogou-o na condição do desengano e desamparo, até que se jogasse para fora da cena fantasmática.

 

Se o acting-out é a mostração em cena num endereçamento ao Outro do que resta não simbolizado, como nos ensina Lacan, na passagem ao ato o sujeito cai da cena. Já não há uma mensagem a ser traduzida ou interpretada, mas a ausência de um sujeito que se deixa cair. No suicídio, o sujeito se defenestra numa tentativa de atravessar a abertura, o marco que separa a cena do mundo, vivenciando a si próprio como o objeto rechaçado, desprezado, caído.

 

Na terminologia jurídica, Carlos Alberto, bem como todos os adolescentes que cometem um ato infator, são hoje denominados “adolescentes em conflito com a lei”, uma espécie de “massa anônima” de quem se retira a história e na qual se depositam estigmas e preconceitos sociais. (Chaves e Rabinovich, 2010).

 

Curiosamente, o termo veio substituir ao “delinqüente”, considerado demasiadamente carregado de significações estigmatizantes. No entanto, ao substituir um termo pelo outro, por um lado conserva-se o significado anterior, mas por outro, subtrai-se o verdadeiro sentido da palavra delinqüente. (liquere= deixar algo ou alguém em seu lugar; o prefixo de= separação; delinquo= faltar com seus deveres, linquo = deixar cair, abandonar).

 

Delinqüir pode ser tomado, então, como um movimento de deixar algo, descolar-se, separar-se, ao faltar com seus deveres. Uma tentativa de passar de um lugar a outro, numa espécie de grito silencioso quando a vivência da adolescência não conta com um aparato suficiente para tal travessia.

 

A transgressão às leis, nestes casos, se revela como tentativas reiteradas de fazer valer a Lei. Em seu apelo extremo, o Estado e seus representantes no Juizado da Infância e da Juventude são chamados a exercer essa função. Transgridem para se assegurarem de que a Lei existe e que gozar plenamente não é possível.

 

Ou passamos a escutar o ruidoso silêncio de seus atos desesperados, ou aguardamos, por vezes indignados, noutras indiferentes, pelas próximas cenas de horror, drama e miséria humana.  

 

REFERÊNCIAS

BASTOS, Ruth, ANGELO, Darlene, COLAGNO, Vera (orgs). Adolescência, Violência e a Lei. Companhia de Freud: Rio de Janeiro, 2007.

CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000 (Folha explica).

CHAVES, Roberta Arueira & RABINOVICH, Elaine Pedreira. Compreendendo um jovem em conflito com a lei e poeta: a questão ética. Memorandum, 19, out 2010, 198-209.

HARARI, Roberto. O Seminário A Angústia de Lacan: Uma introdução. Artes e Ofícios: Porto Alegre, 1997.

LACAN, Jacques. A angústia. Seminário 10 (1962-1963). Publicação para circulação interna. Centro de Estudos Freudianos do Recife: Recife, 2002.

MELMAN, Charles. Os adolescentes estão sempre confrontados ao minotauro. In: APPOA. Adolescência entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.

MELMAN, Charles. Alcoolismo, Delinquência e Toxicomania: Uma outra forma de gozar. Escuta: São Paulo, 1992.

MELMAN, Charles. O Homem sem gravidade. Companhia de Freud: Rio de Janeiro, 2003.

RASSIAL, Jean-Jacques. O Adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.