Juventude em desamparo: efeitos subjetivos da cultura contemporânea

Escrito por: Valéria Codato Antonio Silva em 04/11/2005

Se na noite de ontem a bússola norteadora dos trabalhos esteve voltada às questões sobre o corpo e a subjetividade na clínica para além do divã, ou seja, nas instituições, hoje iniciarei a temática do corpo e a subjetividade em sua relação com a cultura contemporânea, pois a psicanálise tem também a responsabilidade de oferecer uma análise sobre os efeitos da cultura na produção da subjetividade.

 

Ao adotar este título: “Juventude em desamparo”, propus-me a interrogar em que medida nossa cultura atual tem produzido conflitos e dificultado o momento de passagem do mundo da infância ao mundo do adulto. Preferi o termo juventude ao termo adolescência porque este último (adolescência) tem sido alvo de críticas e interpretações equivocadas em nossa sociedade; me refiro aqui por exemplo, ao termo “aborrescente” utilizado no senso comum e até mesmo por educadores ou profissionais psi, o que considero uma desvalorização deste importante momento de reorganização psíquica. Por outro lado, o primeiro termo (juventude), vem a cada dia mais se apresentando como o grande ideal em nossa cultura atual, o que nos convida a situá-la em um contexto sócio-histórico, conforme exponho a seguir.

 

Estudos antropológicos nos indicam que a travessia da fase púbere nas sociedades primitivas era marcada por rituais que indicavam ao indivíduo seu lugar no mundo. Nas culturas onde os rituais são ainda preservados os lugares da criança, do jovem e do adulto são bem delimitados na comunidade. Temos como exemplos algumas tribos de Nueva Gales del Sur, onde as crianças ao chegarem à puberdade são iniciadas em uma cerimônia secreta, da qual só podem ser testemunhas aqueles que já tenham passado por esta experiência. Parte do rito consiste numa fratura traumática de um dente, depois da qual se dá aos iniciados nomes novos que indicam a passagem da infância à virilidade. Em tribos da Austrália Central, os ritos inicáticos compreendem a circuncisão, e se crê igualmente que um espírito mata as crianças e os ressuscita mais tarde. A maioria dos ritos de passagem ou ritos iniciáticos incluem algum simulacro de morte e ressurreição no transcurso do qual se imprime uma marca, geralmente sob a forma de uma ferida no corpo. Os iniciados morrem para a infância, as mães choram por eles como se chora pelos mortos, e aos iniciados se oferece o acesso ao aprendizado dos adultos. Trata-se de um segundo nascimento que torna possível o acesso do sujeito ao universo social e cultural. (Tubert, 1999).

 

Na civilização helênica, a entrada na idade adulta era também marcada por ritos iniciáticos - muitos jovens mantinham relações sexuais com homens mais maduros para que assim ingressassem no pleno exercício de sua virilidade. Na Idade Média, meninos e meninas começavam a trabalhar cedo e cabia aos pais o pleno domínio e controle sobre os filhos. Na Renascença, os filhos jovens viviam sob a autoridade paterna, mas a transmissão dos conhecimentos passou a ser responsabilidade dos colégios, os quais exigiam extrema disciplina e ensinavam valores morais e religiosos que correspondiam ao que a família e a sociedade deles esperavam. No século XIX, Idade Moderna, vigoravam castigos corporais como forma de deter o ânimo dos jovens, e até mesmo medicamentos eram prescritos para mantê-los calmos e obedientes, pois ao despertar da sexualidade era atribuída uma série de atos violentos cometidos por eles. A partir do século XX, a organização da família e da sociedade sofreu intensas modificações. Os pais foram se tornando cada vez menos autoritários e às escolas foi dada a tarefa de educar e socializar crianças e adolescentes. A democratização das relações, a revolução sexual, a liberação do mercado de trabalho para as mulheres são alguns dos exemplos de mudanças observadas nos últimos 50 anos e que provocaram o declínio da autoridade paterna no interior das famílias - crise parental e crise conjugal se instalaram. Como a psicanálise pode compreender a crise da adolescência a partir das transformações sociais e familiares ocorridas a partir do último século?

 

Só podemos nos referir à adolescência, tal qual a concebemos hoje, a partir da sociedade moderna, tornando-se uma classe etária delimitada, ao menos para os povos do mundo ocidental. Nem adulto, nem criança, nem dentro nem fora da família, o adolescente passa a constituir um mundo à parte. Dos skinheads aos estudantes bem comportados, é possível visualizar a busca do suporte coletivo de uma inscrição, de uma marca, de um significante que os represente. Podemos considerar que os cerimoniais e rituais adotados pelos jovens em seus grupos e turmas se constituam em apelos atuais de ritos iniciáticos das sociedades primitivas?

 

Na cultura ocidental, podemos dizer que, paulatinamente, os jovens começaram a sair de um lugar de obediência servil aos discursos médicos e morais, rompendo culpas e tabus, trazendo à luz as pulsões eróticas e agressivas. “Jovem”, no século XX , passou a ser o significante para tudo o que até então era vivido na obscuridade, nos porões da civilização.

 

Impregnaram os costumes, a política, a arte com a esperança de revolucionarem o mundo. Rompendo com as amarras das tradições religiosas e morais que regulavam os freios da relação do corpo com os prazeres, os jovens passaram gradativamente a encarnar o ideal de nossos tempos. (Khel,1998)

 

Não vivemos hoje a “teenagização” da cultura, conforme afirma Maria Rita Kehl? Quanto mais tempo pudermos nos considerar jovem hoje em dia, melhor. Melhor para quem? Para o mercado capitalista, com certeza; para o universo publicitário, sem dúvida, e mais que isso, para o nosso próprio narcisismo. A verdade é que o imperativo jovem se apresenta como uma força opositora aos efeitos que a passagem do tempo confere aos nossos corpos, alimenta a ilusão da imortalidade, da virilidade e da vitalidade dos 20 anos. A imagem da cadeira de balanço da vovó foi substituída pela bicicleta ergométrica, o papai de chinelos lendo jornal na sala agora está nas academias, ou pilotando seu automóvel de última geração. As famílias modernas vivem como se todos fizessem parte da mesma geração – gostam das mesmas músicas, do mesmo estilo de roupas, disputam pelo uso do computador ou do carro, e por que não dizer, até mesmo escolhem os mesmos parceiros para seus relacionamentos amorosos ou sexuais.

 

O ideal hoje não é tornar-se adulto para fazer as próprias escolhas e correr os riscos que isso implica, e sim permanecer jovem e não envelhecer jamais! Ao adotarem o estilo “teen” de viver (este significante “teen” pode nos remeter tanto à fase da adolescência como à cultura globalizante dos americanos), como podem os pais oferecer referências aos filhos para a travessia do mundo infantil ao mundo adulto? Estes adultos que se espelham em ideais jovens, se sentem desconfortáveis frente à responsabilidade de transmitir aos filhos os valores e as tradições que receberam de suas gerações antepassadas. Isto significa que a vaga de adulto em nossa sociedade está vaga (Kehl, 1998).

 

É certo que as famílias estão mais democráticas e quando encontramos tiranos autoritários, geralmente são os filhos oprimindo seus pais. A liberdade conquistada se traduz em um “Mundo sem limites” (Lebrun, 2004), onde as regras são feitas por cada um na busca de seu ideal de felicidade. A oposição entre o velho e o novo, os conflitos entre gerações diferentes eram tão conturbados quanto necessários, pois ofereciam uma rede de proteção imaginária, um Outro como referência e, ao mesmo tempo, onipotência a ser questionada pelo jovem.

 

Para a psicanálise, a adolescência deve ser considerada um “trabalho psíquico” (Rassial,1999), um momento de “elaboração psíquica” (Calligaris, 2000). A concepção de adolescência como uma fase evolutiva universal, sustentada numa fundamentação psicobiogenética não se revela suficiente para compreendermos o que se convencionou chamar “a crise da adolescência”. Não se trata, portanto, de efeitos da natureza ou dos hormônios, mas de uma busca subjetiva que inclui sofrimento e angústia. A palavra adolescência tem como raiz dolere que significa sofrer uma dor, lamentar, estar triste. Adolescer significa ir em direção à dor, ao que arde, ao que queima.

 

A partir das mudanças imperativas do corpo, o adolescente terá que atravessar um momento crítico no qual se faz necessária a renúncia ao corpo infantil e à criança idealizada que foi para seus pais. Uma nova imagem se apresentará exigindo-lhe também o estatuto de uma nova identidade. Tempo dos novos ideais e das utopias, tempo das novas identificações. Sabemos, desde Freud (1923), que ao nascer sem uma identidade, o ser humano está destinado às identificações. Ele situa a identificação como a internalização de um traço, marca restante de um objeto anteriormente investido e perdido, e que indica uma divisão no sujeito entre o “eu” que se forma a partir da somatória das sucessivas identificações e o “ideal do eu” , herdeiro do narcisismo originário. Para Lacan, há uma dimensão imaginária das identificações - Eu Ideal - formado a partir da experiência do estádio do espelho, e o Ideal do Eu, predominantemente simbólico, formado desde a perspectiva das referências terceiras que implicam a castração. Se o inconsciente é o discurso do Outro, conforme nos diz Lacan, estamos condenados a reproduzir os elos da cadeia de um discurso que vem de muito antes de nós – dos pais, dos avós, de um povo, de uma nação.A identificação, portanto, não é simplesmente uma imitação em que A se transforma em B, mas revela, antes de tudo, um aprisionamento original ao outro(semelhante) e ao Outro(tesouro de significantes).

 

O adolescente se encontra em uma encruzilhada, pois tem uma estrada já percorrida (identificações estabelecidas), é fruto de um momento mítico original (eu ideal), carrega consigo as referências simbólicas da cultura (ideal do eu) e deverá se reposicionar frente a esses elementos. Abandonar a imagem infantil e descolar-se do lugar de objeto imaginário que representa para o Outro, é sua grande tarefa, que só poderá ser feita a contento caso as ferramentas do simbólico e do imaginário estiverem em bom estado de funcionamento (ou de amarração). Se para qualquer adolescente é difícil simbolizar as mudanças no real do corpo, para alguns deles, a vivência de uma dor narcísica insuportável pode provocar o florescimento de quadros graves de angústia, acting-outs e até mesmo surtos psicóticos ou suicídios.

 

Para a criança, há uma espécie de promessa que sustenta o período de latência ou seja, ela aceita renunciar à sexualidade infantil (via recalque e sublimação) esperando alcançar no futuro o gozo prometido – “mais tarde você poderá”, “quando você crescer”, até que, chegada a adolescência, o mais tarde é agora, e a promessa se mostra enganadora. O adolescente vive, portanto, a crise de um mau encontro, que nas palavras de Melman (1997) “trata-se de um momento em que o sujeito não encontra o lugar de seu gozo”.

 

O adolescente é aquele que chegou à maturidade física e ao momento de utilizar seu instrumento sexual, de se identificar como homem ou mulher, e no entanto ainda não está preparado para assumir os papéis sociais da maternidade ou paternidade.Ele vive a inconsistência da promessa que lhe fizeram na infância – do gozo total (quando você crescer vai poder!). Seu protesto gira em torno deste ponto, porque o fizemos acreditar que um dia, ao tornar-se homem ou mulher, poderia realizar todos os seus sonhos e desejos.

 

Toda transição, toda passagem de uma situação a outra implica um afastamento, uma separação cujo modelo inicial é o nascimento, e uma saída, cujo significante é a morte, referida na adolescência à renúncia ao mundo da infância. È por isso que este momento da vida se apresenta como aquele em que se descobre um sentido – ou sem sentido – último da existência, em que o sujeito se defronta com sua finitude e limitações, mas também com suas possibilidades, o que lhe permite assumir sua condição essencialmente humana.

 

Presenciamos na vida contemporânea impasses e avanços de uma juventude que se vê desamparada diante da insuficiência dos dispositivos sociais que lhe indique o lugar que deva ocupar. Os pais preocupados em serem pais modernos, pais legais, pais amigos, e pais jovens, acabam por deixarem o jovem sem referências, com mapas queimados e sem bússola para atravessar o deserto sozinho. Como enfrentar o desafio de construir um projeto individual, buscar um lugar no mundo sem a proteção imaginária da família e sem as referências simbólicas das instâncias sociais que o conduziam nesta travessia? A liberdade cobra seu preço em desamparo.  Desembaraçar-se totalmente dos valores sociais e tradições têm produzido um vazio e uma angústia difíceis de suportar. O que esperar de jovens que vivem numa total liberdade de escolhas, mas ao preço de uma solidão absoluta?

 

Em nenhum outro momento da história a adolescência provocou tanto fascínio e temor ao mesmo tempo. Os altos índices de violência, de suicídio, de abuso de drogas e de transgressões sociais dentre os jovens nos convocam a refletir sobre algumas questões importantes, espero ter contribuído com algumas delas.

 

Finalizo com uma frase de Herman Hesse : “Quem quiser nascer deve quebrar um mundo”

 

Ofereço minha fala de hoje a um jovem ( aqui presente)  que nesta data completou 21 anos.

 

REFERÊNCIAS:

 

CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000 (Folha explica).

 

FREUD, Sigmund (1923). A psicologia das massas e a análise do eu. In: FREUD, S. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1975. 18v.

 

KHEL, Maria Rita. A teenagização da cultura ocidental. Folha de São Paulo: São Paulo, 20 set.1998. Caderno Mais!

 

LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

 

MELMAN, Charles. Os adolescentes estão sempre confrontados ao minotauro. In: APPOA. Adolescência entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.

 

RASSIAL, Jean-Jacques. O Adolescente e o psicanalista. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.

 

TUBERT, Silvia. A morte e o Imaginário na Adolescência. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.