Quando propomos o tema da nossa Jornada, como “Um retorno a Lacan”, foi pensando justamente na especificidade do fazer do psicanalista Lacaniano. Passei então, a refletir o que eu faço na minha prática que a diferencia de outras práticas da psicologia, até mesmo das chamadas de abordagem psicanalítica, ou seja, qual o legado de Lacan e Freud que penso sustentar em minha escuta e minha clínica?
Lacan nomeou-se Freudiano, fez um retorno à prática construída pelo Pai da Psicanálise para retomar suas especificidades e diferenciar do que estavam fazendo naquele momento histórico. Não é novidade que psicanálise sempre esteve na contramão e, portanto, sempre causou grandes controvérsias sociais. O foco crítico de Lacan (2008) era sobre aqueles que se diziam psicanalistas e faziam algo muito diferente dos próprios conceitos freudianos, por exemplo, desconsiderar o inconsciente e fazer práticas educativas. Como uma prática que não o considera pode ser psicanálise?
Quando Freud começou a interrogar sobre o que acontecia com as histéricas que padeciam no corpo de algo que não se tratava do orgânico, conseguiu escutar para além das palavras, o que os sintomas diziam, algo estava encoberto e precisava ser revelado a fim de que o sintoma pudesse desaparecer, ou ao menos, amenizar aquele sofrimento. Assim Freud revelou-nos o inconsciente, um saber que não se sabe, porque está recalcado, encoberto por outras lembranças, deslocado por outras palavras, mas sempre tentando ser revelado.
Lacan fez da sua prática um retorno a esse mestre, sempre preocupado com o que os profissionais estavam fazendo da psicanálise. Ele leu as entrelinhas de Freud e desenvolveu as ideias que encontrou esboçadas em suas obras dando um corpo bastante específico para a psicanálise. Com Lacan, essa prática é mais do que teorias, regras e técnicas, ela deve ser uma ética, porque como afirma no Seminário XI, o inconsciente também é. Por isso, sua prática não era rígidas nas regras, porque entendia que a psicanálise é criação e que cada analista tem seu estilo próprio de atuar, desde que seja ético. O que só se sustenta pela formação não formal do psicanalista.
Nossa prática é oferecer a nossa escuta ética, uma ética do bem-dizer, àquele que sofre e busca ajuda para livrar-se do que ele não sabe, que sabe, daquilo que lhe faz mal. Ele supõe no analista, alguém que sabe do que ele padece e, portanto, demanda-lhe seu saber, uma demanda de amor, frente a qual o analista responde apenas com sua escuta, suas palavras e sua presença para fundar o inconsciente do analisando, possibilitar o desenrolar da transferência e fazer com que a análise seja possível. O analista não pode dar garantias de onde o analisando chegará, justamente por não saber nada dele à priori, possibilitar a análise é justamente se surpreender pelo caminho da escuta e com a verdade do analisando que vai sendo revelada ao se sustentar a falta e, somente assim, causar o Desejo.
Não é sem angústia sustentar essa função. Além da angústia, não é nada fácil nem espontâneo. Pois essa ética é contrária a própria cultura que nos diz de um bem-estar e do que nos é bom, por vezes o discurso vigente faz-nos engolir objetos que não precisamos nem desejamos numa falsa promessa de felicidade e até de plenitude. Ilusão narcísica e por isso, facilmente consegue nos captar, se não estivermos advertidos pelo nosso próprio percurso de análise, no divã, que é onde se produz um analista, onde nos advertimos de nosso desejo, nossa falta e nos desnarcisificamos para sustentar essa função de não saber, função semblante de objeto a.
Nas palavras de Lacan “O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar (numa outra cena, escreve ele) se repete e insiste” (1998, p.813). Esses significantes que marcam o sujeito, que localizam ele em quem ele é, são significantes do Outro primordial. O desejo que nos habita, vem do Outro, vem daqueles cuidadores que com seu desejo nos marcam de forma muito singular, faz de cada um único em suas marcas, suas escolhas e suas dores. A análise não promete a felicidade, nem a falta de sofrimentos, mas possibilita àqueles que conseguem sustentar sua análise, algumas quebras de certezas, de limites, de repetições sigmificantes que vieram do Outro e causam sintomas, inibições e angústias.
Nos diz Lacan, no seminário XI: “Pois o inconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conforma a um real – real que bem pode, ele sim, não ser determinado” (p. 30). Essa hiância apresenta-se pela Lei do Significante, base da estruturação do inconsciente enquanto linguagem, assim é possível escutar esses significantes nas malhas da ficção do mito individual e devolver ao sujeito seu lugar de responsável pelas escolhas que lhe trouxe até sua queixa e, principalmente, responsável pelo seu desejo.
Vou trazer um recorte de um caso para dizer da minha prática clínica e do que entendo que estou sustentando do legado de Lacan em cada caso, porque é em cada um e em cada sessão que sustentamos essa função.
Encaminhada por uma amiga psicóloga para um atendimento voluntário, uma mãe me procura para atender sua filha adolescente, fizemos duas sessões de escuta sobre o caso, nessas a mãe estava muito angustiada, chorou muito para contar o que acontecia com a filha e sua própria história de vida. Fizemos um contrato de atender a adolescente por algumas sessões e depois voltaria a falar com ela. Após 5 ou 6 sessões com a adolescente, foi possível constatar que ela estava muito bem em sua vida, estava muito bem na escola e na vida social, falava muito bem da convivência familiar em geral, mas dizia que a mãe era muito estressada, relatou algumas crises de angústia bastante específicas que nem possibilitou ela formular uma demanda de análise. Estava bem ajustada em seu momento aos 12 anos, no tempo de compreender, já com alguns sinais de estar próxima ao segundo despertar sexual. Identifiquei que sua angústia era fruto da angústia materna que transbordava na vida dela. Tomei uma decisão com a adolescente, de oferecer o tratamento a mãe dela, o que ela concordou, embora gostasse de vir as sessões. Quando voltei a escutar a mãe, novamente muito choro e muito desespero, questionava se era uma boa mãe, o que ela estava fazendo de errado, como conseguiria ajudar sua filha. Foi quando propus que eu a atendesse, já que a filha sofria os efeitos dessa angústia materna e ela mesma havia me dito também precisar de ajuda, estava aguardando uma vaga na fila da faculdade para ser atendida pelos alunos quintanistas de psicologia.
T, essa mãe angustiada, começa então sua análise comigo, combinamos um valor simbólico de pagamento, o que dentro das possibilidades dela era tudo o que podia pagar. Mas o pagamento foi um atravessador muito importante em sua análise. Em suas queixas iniciais, ela dizia se preocupar demais com o que todos pensavam dela, estava sempre tensa, não conseguia curtir os momentos da vida, estava sempre cobrando muito dos seus filhos, principalmente da mais velha (aquela adolescente), ela dizia que sabia que estava exagerando, mas não conseguia fazer diferente, sentia-se tão tensa e estressada que descontava neles, com gritos, palavras e castigos, muitas vezes se arrependia. Dormia muito mal, sentia-se sempre muito cansada.
No decorrer das sessões, T. dizia sentir-se “presa” por algo, ao mesmo tempo em que ela não conseguia segurar nada pra si. Inclusive tinha uma infecção intestinal que quando aparecia, nada conseguia reter em seu corpo. Dizia não valorizar suas conquistas e acabava abrindo mão muito fácil do que conquistava, especialmente bens materiais, para retornar a atender uma demanda do Outro, na figura de seu pai, o que levou um tempo até ela compreender. Este muito rígido, sempre dono da verdade, de quem a T. dizia não poder nunca discutir, pois ele sempre estava certo. Foi um pai muito amoroso e atencioso em sua infância, ela até disse ter sido mimada. Ele sempre deixou uma demanda muito explícita de que queria os filhos por perto, fazia muita questão de dar dinheiro, ajudar os filhos e queria que eles assumissem o sítio junto com o hobbie dele, construíssem casas lá. O que não foi nunca o desejo de nenhum deles.
O irmão dela não conseguiu se desvencilhar dessa demanda, tolheu-se enquanto homem viril para ficar sob o teto dos pais. Diagnosticado como bipolar, toma seus medicamentos, não trabalha e não tem nenhuma independência, ajuda o pai no sítio quando está bem. Sua irmã mais velha saiu da casa dos pais, nunca se casou e acabou por ter problemas financeiros e mudou-se para a casa que o pai tinha na cidade que seria para alugar. T mesmo casada e com dois filhos, estava indo no mesmo caminho, morava na casa ao lado da irmã que também seria de aluguel para o pai e depois de diversas tentativas de mudar de cidade e até de país, algo de desesperador lhe tomava conta, era pura angústia que a fazia retornar à casa dos pais.
Cito Coutinho Jorge: “O neurótico precisa conquistar o vazio – para além do imaginário – que a análise lhe proporcionará, ao falar sem se dirigir a um outro como pessoa, mas ao Outro que o constituiu como sujeito” (p.170). Lugar de Outro do analista na transferência, pois não está ali como pessoa, mas como alguém que sustenta uma função.
A angústia de T se tornou uma questão por muitas sessões, era algo que a prendia a demanda parental. Ela achava que devia algo aos pais por tudo o que lhe fizeram, atendia essa demanda de ficar aqui e pagava um preço bastante alto, verbalizou que “se boicotava” mesmo em sua vida longe dos pais. Quando se casou, mudou de cidade, quando estavam começando a organizar a vida financeira, ela entrava em momentos de angústia, quando chorava muito, o dia todo, não se alimentava, estressava-se com o marido até ele fazer o que ela queria, que era voltar para cá. Ele largava emprego e voltava a morar na casa dos pais dela, trabalhar com seu pai na construção civil, que ele odiava.
Em sua análise, T percebeu que nunca deu realmente um espaço ao seu marido, mesmo tendo um casamento bom, esse sempre estava buscando sair da cidade onde morava seus pais, porque não conseguia trabalho. Nessas saídas, ela acabava fazendo-o largar tudo e voltar ao zero na casa dos pais, dependendo financeiramente deles. O que ela mesma descobre e verbaliza que “parecia uma criança mimada que fazia birra até conseguir o que quer”.
Mas quando estava ali, na casa dos pais (no sítio, ou nessa casa de aluguel), sentia-se presa, constrói uma metáfora dizendo que ela era um pássaro preso em uma gaiola que queria muito voar mas algo lhe impedia, mas não era a gaiola, pois esta estava com as portas abertas. Essa metáfora voltava diversas vezes em suas sessões. Quando foi apontado sua escolha em ficar nessa gaiola por pensar estar em dívida com os pais. Como escreveu Lacan que “o que o neurótico não quer é sacrificar sua castração ao gozo do Outro, deixando-se servir dela […] Imagina que o Outro demanda sua castração” (p.841).
Essas tentativas de sair repetiu-se, ela foi por três vezes morar em um país da Europa e voltava para a casa dos pais na mesma condição. Na terceira vez, ela comprou a passagem de ida e volta, quando jogou fora a passagem de volta, entrou em desespero, assim como nas outras vezes, ela chorava muito e não conseguia nem cuidar dos seus afazeres, nem mesmo de seus filhos. Voltava e seu marido ficava, até ser possível ele comprar a passagem e ter algum dinheiro para voltar. Todos os anos de casados houve esses momentos em que ela voltava para os pais e deixava o marido em outra cidade ou país. Uma verdade que ela descobre e me surpreende, ela se deu conta de que nunca considerou a família como ela, o marido e os filhos, porque sempre incluía seus pais e muitas vezes excluía o marido.
Escreveu Lacan (1998, p.838), que “o neurótico é aquele que identifica a falta do Outro com sua demanda” […] a demanda do Outro assume a função de objeto em sua fantasia”. T recolheu essa demanda dos pais e fez disso sua gaiola, podava suas asas para ficar ali, por perto dos pais, e as tentativas de sair dali parecia-lhe que estava fazendo algo errado, era contra os princípios do pai, até educar seus filhos tinha que ser no sítio e outras formatações para não ser “errado”. Mas ela queria voar e suas tentativas eram frustradas por seu próprio inconsciente, voltava ao gozo de estar presa na demanda do Outro, sustentando-o como potente.
T nos mostra as duas faces da angústia sustentada pelo objeto a, como causa de desejo e a mais-gozar. Estar longe dos pais causava-lhe angústia e estar perto também, além de sintomas outros. Cito Coutinho Jorge: “A angústia sinal, decorrente da ameaça da perda do objeto, se refere à face causa de desejo do objeto a. Já a angústia automática decorre da invasão de gozo precipitada pela face mais-gozar do objeto a. A primeira tem relação com a ausência, a segunda com a presença do objeto” (2017,p. 202).
Uma sessão bastante específica, que T se questiona o que acontece entre ela e a filha, já que ela percebe que há diferença na forma como ela lida com o filho de 7 e a filha com 12. Até que ela consegue colocar palavras na história dessa primeira gravidez, a qual ela não queria, chorou muito quando descobriu. Toda a família estava feliz, menos ela. Sentia-se “presa” a essa criança que dependeria dela, nunca mais conseguiria ser livre em sua fantasia. Pode verbalizar o quanto sentiu raiva daquele bebê, que não tinha culpa. Havia ali um desejo de morte tão intenso, que a fez paralisar diante da bebê engasgando, que foi socorrida pela avó. Penso que a raiva da criança prender ela, também tinha a ver com a demanda do Outro, isso era atualizado constantemente na relação dela com a filha. Após essas verdades ditas, apontadas e escutadas por T em meio a muitas lágrimas, na sessão seguinte ela disse que algo mudou, ela nem sabe o que foi. Mas a raiva deslocada para a filha parece ter encontrado um novo sentido que deixou de afetar a relação das duas. O que de certa forma me tranquilizou na aposta que fiz no início de aceitar ela em tratamento no lugar da filha.
Nos diz Coutinho Jorge (2017), que o analista como semblante do objeto a funciona como uma convocação a improvisar e reinventar constantemente, porque é assim que é possível, de fato, fazer a psicanálise. Trata-se, de fato, de olhar cada caso como único e singular, o autor nos diz que a psicanálise vê o sujeito como insubstituível, é por isso justamente na direção do tratamento na ética em que o Sujeito possa se reconhecer e se atrever a ser o autor de sua própria história diante do esvaziamento possível da demanda do Outro, o que só é possível pelo desejo do Analista. Nas palavras de Rabinovich (2000, p.32):
O processo de análise permite descobrir uma contingência desse sujeito: o que ele foi especificamente para o desejo do Outro. Essa contingência implica que essa verdade, terminada a análise, seja uma verdade que, por ser contingente, possa cair; seja uma verdade com a qual se pode brincar.
Assim, deslizando pelos significantes trazidos por T, ela foi traçando novos rumos, desvencilhando um pouco mais das demandas paternas, foi conseguindo separar-se dessa alienação e construir um espaço outro no seu casamento e com sua família, não mais agregando os pais juntos. Foi aproximadamente 2 anos e meio de trabalho, não se chegou ao fim, mas muitas descobertas e muitas construções foram feitas por ela, até que ela voou. Literalmente, ela e o marido decidiram ir embora para outro país diferente, desta vez com mais preparo, organizando-se melhor, já não naquele desespero de mudar como nas tentativas anteriores que parecia que fugia de ser engolida pelo Outro. Ele foi antes, arrumou trabalho, ela manteve-se aqui trabalhando e sustentando a casa sozinha, descobriu que conseguia fazer isso sem ajuda financeira e outras dos pais, ainda com alguns momentos de preocupação e ansiedade, mas foi dando conta da sua vida e dos filhos, queixa desde o início presente, achava que nunca daria conta das suas responsabilidades. Dizia sentir que dessa vez era diferente sua mudança. Planejaram e há um ano ela foi, o pássaro abriu suas asas e voou para o outro lado do oceano, sem o peso da demanda do Outro em suas costas, trocando pais por país, dizia que sempre sonhou de morar em outro país, ela assumiu seu desejo.
Referência
JORGE, Marco A. C. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, volume 3: A prática analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
LACAN, Jacques. Subversão do Sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de janeiro, Zahar, 1998. p. 807-842.
LACAN, Jacques. Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
RABINOVICH, Diana. O desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
[1] Texto apresentado na mesa-redonda “A especificidade do campo lacaniano” na I Jornada de Psicanálise da Associação Ato Analítico de Maringá que aconteceu nos dias 13 e 14 de março de 2020.