A necessidade de um diagnóstico na clínica psicanalítica é inegável, sempre precisamos olhar com cautela para a estrutura daquele sujeito que nos procura. Não para enquadrá-lo em algum rótulo, porque isso é contra nossa própria atuação, mas simplesmente para direcionar o tratamento para o lado certo do caminho, se é que podemos delimitar que certo é esse. Explicando melhor, temos que verificar quais os recursos psíquicos que o sujeito apresenta em sua estrutura para intervir de forma ética e realmente caminhar na direção da cura possível.
O olhar clínico do diagnóstico ressalta a forma como o sujeito se relaciona com os objetos, sendo as pessoas a sua volta, os objetos coisas e seu próprio corpo. Esta relação com os objetos demonstra o modo como o sujeito lida com a lei e a castração, demonstrará também a posição que o sujeito assume e consequentemente a sua estruturação psíquica, entre neurose, psicose ou perversão.
A construção da estrutura psíquica inicia muito cedo na vida do bebê, já que ele nasce em um contexto familiar e social, dentro de uma história já começada bem antes da sua existência. Essa história será aos poucos apropriada pelo bebê e modificada ou não conforme as suas escolhas conscientes e inconscientes. A vida psíquica do bebê começa a se formar em relação às funções materna e paterna, que não são necessariamente a pessoa mãe e pai. Vamos falar da mãe e do pai nessas funções para facilitar a exposição.
A função materna é aquela marcada pelo desejo materno que inscreve no bebê as suas demandas e com elas as satisfações pulsionais que ocorrem neste corpinho cheio de sensações não compreendidas. A mãe ao tomar esse corpo em sua própria satisfação fálica, no primeiro tempo do Complexo de Édipo, sente-se plena por um curto tempo e logo se desprende do bebê para outra função, fixa algo no psiquismo do bebê da satisfação e não totalização. Ou seja, as demandas maternas precisam ser variadas, por exemplo: amamentação, sono, banho, xixi, coco, sorriso e outras, assim ao mesmo tempo em que supri as necessidades do bebê, ela deixar-se faltar ao bebê para que algo marque sua subjetividade.
A falta é estrutural, porque não há plenitude. Mas há a suposta plenitude vivenciada quando os corpos mãe e bebê vivem como se fossem um, e a criança vive seu momento de narcisismo primário ao ser tudo com e para a mamãe, perfeito e completo. Momento constituinte do Eu ideal, que ao longo da vivência do estádio do espelho e a separação dos corpos após diversos movimentos de alienação e separação entre mãe e bebê, conclui-se: Não, a mamãe não sou eu, eu não sou a mamãe, mas eu posso tê-la. A mãe agora reconhecidamente como outro, faz o bebê ser ativo ao querer seduzi-la.
Como explica Angela Valore, no texto o que fixa é o que não cola, essa relação com a mãe não pode ser colada. Se a vivência do bebê se faz como extensão do corpo materno, os corpos mãe-bebê ficam colados e faz com que não haja a falta para fixar no psiquismo em formação. O que fixa é sempre algo que falta, quando a demanda materna falta, dá um tempo, quando há a separação, surge o enigma do desejo materno com a pergunta do bebê: o que ela quer?.
Assim, a estrutura Psicótica ocorre se a mãe permanece colada ao filho, coloca-o no lugar de realmente ser seu objeto faltante e, portanto, agora completa com seu apêndice corporal, ela se mantém gozando de modo sintomático ininterruptamente. No inconsciente materno não age o Nome-do-Pai que faria a separação dos corpos e das subjetividades. O filho no lugar ainda alienado de falo imaginário, também alimenta seu lugar de objeto do desejo materno, não se reconhece Um, assim fica submetido à lei única do Outro materno. Esta lei rege tudo para o filho, sendo que essa mãe não tem dúvidas em relação a esse pequeno ser, já que ele é ela e seus corpos se fundem como se fossem um só, imaginariamente.
A constituição do sujeito psicótico nem sempre é percebida antes de um surto psicótico, ou seja, quando o inconsciente retorna pelo Real ao indivíduo e os recursos psíquicos que ele possui são a alucinação ou o delírio. Mas alguns indícios são possíveis de verificar e necessários ao diagnóstico psicanalítico: a fala do psicótico não é contada de forma a historicizá-lo, ele opera com signos e não faz metáforas nem atos falhos (recursos neuróticos do retorno do recalcado); não forma ideal de eu nem identificações apenas imitações; não usa o faz de conta, porque palavra e coisa se misturam; apresenta cortes de ideias sem o deslizamento dos significantes da operação simbólica, demonstrando a foraclusão do nome-do-pai.
Se as operações de alienação e separação ocorrem com a intervenção do terceiro (função paterna), mãe e bebê são aos poucos reconhecidos como inteiros em seus corpos e faltosos enquanto não totalizado. O bebê, agora já um pequeno menino, entra no segundo tempo do Complexo de Édipo, no qual ele seduz a mamãe e tem sentimentos ambíguos em relação ao papai, já que ele é um obstáculo para ter a mãe só pra si, ocorre a rivalidade do menino ao pai.
Neste período da vida do menino, na fase fálica, as curiosidades referentes ao corpo são grandes, tanto seu quanto dos outros, principalmente pelas suas sensações prazerosas no seu órgão genital. Durante essas pesquisas, a criança constata a diferença sexual anatômica entre meninos e meninas. Essa descoberta é muito importante para a criança, porque é quando a verdade universal de que todos têm pênis é negada, então não é verdade que todos têm pênis. E o modo como a criança reagirá frente a essa negação com o apoio das funções materna e paterna, iniciará uma ou outra estrutura, neurótica ou perversa.
Se a mãe, neste momento do Complexo de Édipo, apaga a função do pai, deixa-se seduzir pelo menininho e coloca-o no lugar de quem a faz toda fálica, ou seja, de ser seu falo simbólico, ela se posiciona como não castrada. Diferente daquele momento de ser o falo imaginário que é apenas o apêndice corporal materno. O menino como falo simbólico, faz a Renegação da diferença sexual anatômica, mesmo após sua constatação ele nega a negação e a conclusão dele é que não é verdade que não é verdade que todos têm pênis . Desta maneira, o menino sustenta a mãe portadora do falo e utiliza o fetiche para tal, estrutura-se de maneira perversa, não passa pela castração e nem pelo recalque que cinde o sujeito do inconsciente.
Então o perverso é todo, não cindido, porque foi desde cedo desobrigado da lei paterna pela mãe que se mantém fálica e os cortes até então ocorridos não são reeditados pela Lei. Não há demanda de análise se não há o saber inconsciente, ele é portador do gozo absoluto, não se submete a lei da cultura e seduz todos a sua volta para conseguir o que ele quer, sem culpa faz todos objetos de sua satisfação. A sua posição é de saber o que faz o outro gozar, com isso, a entrada dele numa clínica se dará apenas para o seu próprio gozo se assim o desejar, fazendo do analista seu objeto, a constatação desta estrutura faz com que o analista se posicione de modo a não aceitá-lo na clínica.
A estrutura neurótica ocorre quando na constatação da diferença sexual anatômica, a criança reedita todos os cortes anteriores que marcaram a sua história, com as diferenças entre a função materna e paterna, assim como as vivências entre eles das quais ela era excluída da cena, já que é o pai que é desejado pela mãe. Assim, a criança entenderá que a castração para as meninas foi consumada, elas são castradas e para os meninos fica como uma possibilidade de ocorrer. Esse medo da castração faz com que o menino caminhe para a dissolução do Complexo de Édipo, a aceitação da metáfora paterna com a promessa de que um dia ele poderá vivenciar sua genitalidade, ocorre o recalque secundário e a formação do inconsciente e do sujeito cindido, sujeito propriamente da psicanálise.
A metáfora paterna é que faz o fechamento do recalque secundário, sobre aquele primário no qual ficaram as marcas primeiras do sujeito fixadas, estas feitas pelo descolamento – separação – do corpo materno e do não gozo absoluto da mãe, marca para o sujeito que ele não é tudo, não é completo. Se há uma falta constituinte, esse sujeito pode se fazer desejante, constituição da estrutura neurótica. A escolha da neurose entre a histérica ou obsessiva vai se construir conforme o sujeito se posicionou diante da diferença sexual, enquanto não possuidor do falo, castrado, portanto com menos valor é a posição da histeria ou aquele que tem o falo e precisa obsessivamente falhar para não ocupar o lugar do pai junto a mãe.
A verificação da estrutura neurótica na clínica é através do discurso do sujeito que nos procura, qual a posição diante da castração que ele apresenta nesse discurso. Se há metáforas, deslizamento dos significantes e demanda de análise, o sujeito é cindido e vem em busca de um saber que ele não sabe que sabe. Porque ao se estruturar neuroticamente, o sujeito quer ser a causa do desejo do outro, mas muitas vezes se sente objeto desse desejo, para não ser objeto e ao mesmo tempo sustentar a falta necessária ao desejo e obter gozo fálico que é sempre parcial, o neurótico responde à demanda do outro com inibições, sintomas e angústias.
Desde aquele primeiro enigma que o bebê constrói na relação com a mãe, o que ela quer? , estabelece demandas da mãe a ser satisfeitas pelo bebê que permanecem inscritas no ideal de eu. Estas demandas são reeditadas nas relações atuais do indivíduo e ocorre um constante intercâmbio de posições entre ser sujeito desejante ou objeto que tampona a falta do outro e ser objeto é o que o neurótico não quer. Ao responder as demandas do outro, o neurótico o faz de modo a manter o desejo insatisfeito, mas suas respostas entre inibições, sintomas e angústias podem lhe causar muito sofrimento, entre gozos fálicos e gozos sintomáticos, quando o sofrimento se torna insuportável é que há a demanda de análise e o engajamento na mesma. No caminho da análise, o sujeito não deixará de ter uma estrutura neurótica, nem deixará de ter sofrimentos, mas se constituirá enquanto sujeito advertido de sua falta, da sua constituição e, mais importante, implicado com seu desejo.
Referencias
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Emília de Oliveira Diehl. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
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FREUD, Sigmund. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925). In: Edição Standard Brasileira das Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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SOUZA, Aurélio A. Metáfora Paterna. In: CHECCHIANATO, D. e et al. A Clínica da Psicose. 2ª Edição. São
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VALORE, Angela. O que fixa é o que não cola. In: <https://letrapsicanalise.files.wordpress.com> 2015.