Praticar a psicanálise e fundamentá-la teoricamente é o legado que nos deixou Freud. Afinal, a teoria psicanalítica quando não apoiada na clínica se traduz inócua, e a clínica não sustentada em fundamentos teóricos pode produzir efeitos nocivos. É de nossa responsabilidade ética, portanto, manter a amarração teoria-clínica iniciada por Freud, para que então possamos sustentar as palavras de Lacan, quando afirma que “um psicanalista deve estar à altura do discurso de sua época”.
Nos últimos (30) trinta anos, para além do consultório tradicional, minha trajetória clínica também se deu em espaços públicos e institucionais, o que possibilitou-me enveredar por questões téoricas diversas, mas sempre instigada pelo o que a escuta clínica produzia em mim, como o que trago hoje para essa interlocução.
Nessa travessia de três décadas, as queixas e as demandas endereçadas ao tratamento, embora apontassem sempre para o mesmo mal-estar, encontraram formas muito variadas de se manifestarem. Ao prestar atendimentos num ambulatório do SUS nos últimos anos, testemunhei o que tem sido amplamente divulgado nas estatísticas oficiais: um crescimento significativo de números de suicídios e também de automutilações, principalmente entre jovens adolescentes. Como entender tais manifestações clínicas e, principalmente, quais intervenções são possíveis do campo da psicanálise nestes casos?
Se considerarmos que o sintoma, embora seja uma produção subjetiva, se articula ao que é da ordem de um discurso social que busca disciplinar os modos de gozo, concluímos que nos tempos de Freud, o corpo da histérica convertia em sintoma a repressão sexual própria daquele cenário histórico. Como podemos, então, ler e decifrar o sofrimento próprio de nossa época?
Cito Colette Soler (2019, p. 18):
“...se digo uma palavra sobre a atualidade que vivemos, sentimos bem, todo mundo sente, que alguma coisa começou a mudar na economia das pulsões e na gestão dos corpos da qual ela é solidária. É difícil dizer quando isso começou e é, sobretudo, muito difícil antecipar até onde ela irá, nem quais serão as consequências.”
Ao estabelecermos uma relação “corpo-sintoma-gozo”, cabe-nos primeiramente esclarecer de que corpo falamos em psicanálise.
Soler (2019) enfatiza que os principais conceitos da psicanálise implicam o corpo: traumatismo, pulsão, libido, sintoma, gozo, objeto. E, ainda, afirma que do início freudiano até o fim do ensino lacaniano encontraremos a questão do corpo, ou seja, de como se articulam o inconsciente e o pulsional.
Ao romper com a dicotomia mente/corpo, a psicanálise se ocupa de um corpo pulsional, corpo erógeno, atravessado pela linguagem. Um corpo falante, regido por um órgão chamado libido e que busca constantemente satisfação.
Embora os avanços científicos insistam em nos dizer que somos um aglomerado de células que se reproduzem, que nosso psiquismo se reduz ao funcionamento neuroquímico, e que nossa existência não é mais do que uma máquina ou uma engrenagem movida por hormônios e outros elementos fisiológicos, nós, psicanalistas, que não nos ocupamos da ciência, do organismo ou do corpo biológico, dizemos que habitamos um corpo, o possuímos, mas não somos um corpo. Somos sujeitos de desejo e conforme Lacan (1964) dizia “O importante é aprender como o organismo vem a ser apanhado na dialética do sujeito”. (Posição do Inconsciente, In: Escritos).
Freud colocou em evidência que o somático, isto é, o conjunto das funções orgânicas em movimento, habita um corpo que é também o lugar da realização de um desejo inconsciente. Paralisias, surdez, cegueira, sintomas histéricos que foram então considerados como “palavras que corriam pelos nervos”, reminiscências do passado que se dissolviam a partir do momento em que as representações recalcadas inconscientes podiam vir à tona pela palavra, tornando-se conscientes. Como argumentava Freud, a histeria é um tipo de manifestação em que o corpo conta uma história por meio de hieróglifos, uma escrita a ser decifrada por um Outro.
Lacan, por sua vez, esclarece que o apossamento do corpo pelo simbólico dá-se antes mesmo do nascimento e se estende para além da morte. A criança, antes de vir ao mundo, já está imersa numa ordem simbólica. Ela já ocupa um lugar no desejo de seus pais, muitas vezes já tendo um nome e um caminho traçado para seu futuro, coberto de expectativas e promessas. Assim se estrutura o novo ser, atravessado pelas demandas e pelo desejo dos pais aí veiculado, também permeado pelo discurso social.
Nas palavras de Soler (2019): “O sujeito, enquanto representado pela cadeia significante, precede o corpo que será o seu [...] e sobrevive na cadeia de sua história, nos traços de si mesmo que vai deixar depois de sua morte.” (p.23)
O corpo é também memória de tudo o que foi vivenciado no início da vida, das relações primordiais do Ser com o Outro parental. É a partir das inscrições dos traços mnêmicos do que foi escutado, do que foi visto e vivenciado pelo enfant, de suas possibilidades ou não de simbolização e representação, que se fundará o aparelho psíquico de um falasser.
Nosso Eu (Ego), nos dizia Freud, se forma a partir da superfície corporal e de nosso narcisismo, o que, na perspectiva de Lacan, se traduz na experiência do “Estadio do Espelho”, um acontecimento no qual se dará a aquisição do corpo a partir de uma imagem unificada que vem do campo do Outro. Vivência estruturante que marcará um antes e um depois, na medida em que as partes de um corpo fragmentado (“Corp morcelée”) do tempo do autoerotismo passam a constituir agora uma imagem de um corpo unificado, corpo imaginário do narcisismo. Importante salientar que, uma vez alojado neste “Um unificante do corpo”, a angústia sempre acompanhará o sujeito ao se deparar com situações ameaçadoras de retornar ao corpo despedaçado.
Podemos concluir que em relação ao Outro, temos, portanto, uma primeira alienação que é simbólica, e uma segunda, por assim dizer, que é imaginária. Como afirma Silvia Amigo (2007), do Outro recebemos a linguagem e a imagem. Se o espelho nos devolve uma imagem na qual nos identificamos e nos reconhecemos - o Um unificante do Imaginário- isso só é possível porque também recebemos do Outro os traços unários que possibilitaram a composição de uma rede de significantes que nos representam. É neste entrelaçamento Simbólico-Imaginário que se dá a constituição de nosso psiquismo e de nosso corpo.
Mas, há algo de nosso corpo que resiste a qualquer forma de imaginarização ou simbolização. É o corpo pulsional que permanece fora do mundo representacional: Real que ex-siste, insiste, pulsa e goza!
A noção de gozo está plenamente ancorada na corporeidade, no corpo vivo. Não há gozo sem um corpo vivo, afirmava Lacan. Do mesmo modo que a linguagem é condição do inconsciente, o corpo vivo é condição de gozo. Lacan nos pergunta: “Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza” (Lacan, 1972-1973, Sem. 20, p.35).
No processo de constituição de um sujeito, o Real, o Simbólico e o Imaginário vão se enodando num complexo movimento de articulação entre carne, palavra e imagem, até formar o ser de linguagem. Por isso, só podemos falar de corpo a partir dessas três dimensões (RSI) e o abordamos ao modo borromeano.Cito Lacan (1974-1975, Sem. 21), “que o nosso corpo seja de três dimensões é o que não deixa nenhuma dúvida”.
Na intersecção entre o corpo que goza (Real) e o corpo falante (simbólico-imaginário) localizamos a estrutura do sintoma, que Lacan definiu como “um acontecimento de corpo”, do corpo enquanto substância gozante.
Contudo, para além das formações do sintoma, Freud já nos dizia, há inibição e há angústia. Outros modos de sofrimento, que se estruturam de maneiras diferentes e colocam o “corpo em cena”. Não se equivalem, embora se articulem. O sujeito se inibe e faz sintoma para evitar a angústia; uma inibição pode resultar em um sintoma (Freud, 1925-1926); angústia e sintoma se substituem um ao outro (Freud, 1932-1933). Afirmações freudianas que apontam para a mobilidade entre essas manifestações e que demonstram o ponto comum que as liga: o desejo inconsciente. Para Lacan, apontam para a dimensão do Real.
Se na histeria testemunhamos um corpo falante, cujo sintoma condensa seus dramas e tragédias, buscando incessantemente ser olhada, amada e desejada, (mas, paradoxalmente, mantendo sempre seu desejo insatisfeito), nos deparamos na clínica atual com fenômenos que mostram no corpo um sofrimento psíquico, e porque não dizer, um modo de gozo, que não se traduz em palavras.
São denominados fenômenos e não sintomas, justamente porque não se tratam de formações do inconsciente que apontam para o material recalcado. Aqui, diferentemente do sofrimento sintomático, não há palavras recalcadas, mas ausência delas. É a emergência do Real que escapa à captura pelo processo de simbolização e imaginarização e que insiste num gozo fora do campo fálico.
No fenômeno, o corpo falante dá lugar a um corpo com falhas na formação da imagem de si e da representação do Eu. Corpos demasiadamente presentes em sua nudez simbólica-imaginária: escarniçados, mal-tratados e até mesmo mutilados. Podemos testemunhar na clínica a recusa em se alimentar de uma anoréxica transformando-se num corpo esquálido, empalidecido, quase sem vida; um corpo mal-tratado e definhando daquele que se mantém anestesiado pelas doses diárias de álcool ou de drogas ilícitas; a taquicardia, a falta de ar, o formigamento das mãos, o suor excessivo e a sensação de morte eminente que acompanham os que se queixam de pânico; os fenômenos psicossomáticos que, por vezes, mostram-se à flor-da-pele; o corpo de um depressivo que se recusa a sair da cama para atividades básicas de sobrevivência; as automutilações e até mesmo as tentativas frequentes de suicídio como apelos dirigidos ao Outro.
O que estes corpos exibem não é metáfora na carne, não são palavras amordaçadas, que por traduzirem um desejo proibido e censurado, se convertem em hieróglifos a serem decifrados, tal como encontramos no sintoma histérico.
Diversamente, no fenômeno, o corpo coloca “em cena” o inominável, o impalavrável. Desde Freud, chamamos de acting-out ou atuação aquilo que não pode vir pela palavra ou rememoração, mas que se mostra pela via de uma repetição em ato. Lacan (Sem X, A angústia, 1962-63) dizia tratar-se de uma “monstração” - um neologismo que une mostração com algo de monstruoso que ali comparece.
Como dito anteriormente, inibição, sintoma e angústia representam três possibilidades de o sujeito se defender de seu desejo ou de abordar o Real. E todas elas implicam o corpo e se referem à estrutura do ser falante e ao campo do gozo. É certo que o sintoma neurótico ainda reina nos consultórios, mas na atualidade, nos deparamos frequentemente com corpos paralisados numa espécie de ponto zero do movimento, numa letargia, indolência que encontramos em tantos jovens e adolescentes nos casos de inibição. Ou, paradoxalmente, nos chegam casos de transbordamento pulsional num corpo que, ao vivenciar o ponto máximo de angústia, se coloca em ponto extremo de movimento (acting out ou passagem ao ato).
No que diz respeito à angústia, Lacan (1962-63) já havia exposto no Seminário X que o acting-out e a passagem ao ato modos de emergência do Real. Sem qualquer anteparo, são manifestações desvinculadas da rede de significantes. Sinal de ameaça sofrida pelo Eu e que se manifesta em sua face mais avassaladora. Conforme sua afirmação: “a angústia é um afeto que não engana”. Ao que acrescentaria na “Terceira” (1974): “...a angústia é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo.”
É importante salientar que muitas vezes os acting-outs são lidos por outros profissionais como “comportamentos auto-destrutivos”, como muitas vezes são entendidas as toxicomanias, as anorexias, as auto-mutilações, dentre outros. Contrariamente, entendemos tais fenômenos como “dispositivo de auto-conservação”, uma tentativa muito particular de defender-se da devoração por parte de um Outro tão onipotente que seria capaz de apagar sua condição de sujeito desejante. Devoração que deve ser entendida no sentido de seu corpo (ou parte dele) permanecer como objeto de gozo do Outro.
Nos tempos da constituição de um sujeito, perde-se o corpo (real) em troca da palavra (simbólico-imaginário), como já foi dito. Para que o corpo próprio se organize, deverá tornar-se “impróprio” para o consumo do Outro. Ou seja, o Outro materno deverá investir libidinalmente no corpo do enfant ao preço de perdê-lo, deixá-lo cair como objeto de gozo. Somente assim, poderá advir ali um sujeito de desejo num corpo falante.
Caso contrário, quando o Outro materno não pode perdê-lo como seu bem ou seu objeto de gozo, se instalará uma problemática na constituição do Eu, nos processos de identificação e, consequentemente, na formação do narcisismo. Não é o que encontramos nos adolescentes e jovens que frequentam nossos consultórios, sejam públicos ou privados, que habitam um corpo que parece não lhes pertencer por completo? Não sabem dizer de si mesmos, de sua história, do que lhes traz alegria, do que projetam para o futuro, nem tampouco de seu sofrimento. Quando muito, alegam situações do cotidiano frustrantes, corriqueiras, para às quais buscam soluções imediatistas: deixam de frequentar a escola, abandonam os amigos da realidade em troca das redes sociais, se afastam dos familiares, e por vezes se manifestam de maneira impulsiva e até mesmo transgressiva; consecutivos acting-outs como gritos por socorro.
Dizem que não suportam as frustrações. Ora, toda frustração carrega consigo uma dor narcísica, a “falta-em-ser” que todo sujeito vivencia ao perder a ilusão de completude e perfeição experimentada nos tempos do narcisismo primário. E, só podemos suportar as inúmeras frustrações quando estamos bem posicionados quanto à nossa condição da castrados.
Como seres falantes e faltantes, seguimos a vida, superando frustrações e lutos diante das perdas diárias que sofremos. Mas, para alguns sujeitos viver é estar constantemente ameaçado de desaparecimento; é sofrer uma dor permanente que “não cessa de não se escrever”, dimensão do Real, segregada ao silêncio, ao inominável, àquilo que não foi colonizado pelas palavras. O acting-out então comparece ali onde o acesso à palavra manca.
Nesses casos, a Clínica do Real é o que de melhor podemos ofertar! Pois, um psicanalista deve visar em sua escuta a dimensão da pulsão, que ao presentificar o Real, aponta para o modo particular de gozo de cada sujeito, o que sabemos também implica sofrimento, e, ao fazer o sujeito falar, através dos equívocos da cadeia significante, permite que o indizível possa ser traduzível em palavras. Afinal, lá onde isso fala, isso goza!
Lacan (1975-76 – Seminário 23) enfatiza que o único remédio para o sintoma é o analista jogar com a equivocidade do significante; que a inibição deve ser questionada em seu sentido defensivo e transformada em sintoma; e a angústia deve ser acolhida pelo analista e nomeada pelo analisando, de modo que, num segundo momento, possa se transformar em inibição ou sintoma, onde no reino da palavra possa fazer o sujeito deslizar na cadeia de significantes e se questionar sobre seu desejo e seu gozo.
Como argumenta Dominique Fingermann (2005), para o Real impossível de suportar, não há remédio, mas tem tratamento: o sintoma é um deles, o psicanalista outro.
Podemos concluir que um psicanalista toca o corpo (real) com o significante. E, assim, introduz o corte necessário para que esse corpo que “balança, mas não cai”, possa cair da posição de objeto de gozo, separar-se do corpo do Outro, e assumir sua responsabilidade como sujeito desejante, correndo riscos e fazendo apostas, sem ter que colocar seu corpo ou partes dele, ou até mesmo sua vida em jogo para garantir sua condição subjetiva. Nos casos de automutilação, prática adotada por muitos adolescentes hoje, é interessante levar em conta que ao fazerem “cortes na pele” introduzem o significante “corte” que, nas palavras da maioria deles, ameniza sua dor de existir.
Como dizia Lacan no Sem XX (1972-73): “o mistério do corpo falante, o mistério do inconsciente, é o Real”.
E como psicanalistas não podemos recuar diante dos mistérios e enigmas, pois essa tem sido a prática psicanalítica desde sua origem. Mesmo que, por vezes, essa práxis de simbolizar o real seja tão angustiante!
Referências
Lacan, J. O Seminário 20 (1972-73). Edição não comercial. Escola Letra Freudiana, 2010.
Lacan, J. O Seminário 23 (1975-76). Rj, Jorge Zahar
Lacan, J. O Seminário 10 (1962-63) Publicação não comercial.
Lacan, J. O Seminário 21 (1973-74) Publicação não comercial. Espaço Moebius, 2016.
Lacan, J. A terceira (1974)
Amigo, S. A clínica dos fracassos da fantasia. Rio de Janeiro, Cia de Freud, 2007.
Fingermann, D. e Dias, M. Por causa do pior. São Paulo, Iluminuras, 2005.
Soler, C. O em-corpo do sujeito. Salvador, Ágalma, 2019.