Quem, dentre nós, é lacaniano?

Escrito por: Valéria Codato em 14/03/2020

“Sejam lacanianos, se quiserem, eu sou freudiano.”

Com essas palavras, Lacan (1980) registrava em Caracas sua filiação, e, de certo modo, a de todo aquele que quisesse seguir seu ensino. Apesar das diferenças e distâncias que Lacan apresentou frente a inúmeras concepções freudianas ao longo de sua produção, chega ao final de sua vida afirmando ter seguido os passos de seu mestre, Freud.

Essa frase também parece ecoar uma espécie de convite. Arrisco-me até mesmo a dizer, uma demanda de Lacan para que seu legado fosse reconhecido e eternizado, que suas ideias fossem disseminadas e revigoradas no decorrer do tempo, tal como ele empreendera com seu famoso “retorno a Freud”.

Por quê propor, então, nesta Jornada, “Um retorno a Lacan?”

Testemunhamos na atualidade tentativas veladas ou até mesmo explicitas de ultrapassagem do legado freudo-lacaniano por parte de profissionais que, inseridos no campo psicanalítico, insistem em adotar uma prática voltada aos problemas de uma suposta realidade "pós-moderna", e acabam por produzir desvios éticos que comprometem o futuro da psicanálise. Torna-se crucial, portanto, retomar os conceitos fundamentais bem como a ética que fundamenta nossa práxis para assegurarmos que a transmissão da psicanálise não seja tomada como objeto da moda ou do mercado, submetendo-se a captura imaginária fascinante que o consumo promove na atualidade.

Há exatamente 100 anos (1920), Freud publicara “Além do princípio do Prazer”, considerado como um giro teórico em sua obra. Ao se deparar com a compulsão à repetição de situações que não traziam qualquer forma de prazer, mas sofrimento, concluiu que há em nossa vida mental algo mais elementar, mais primitivo, mais além (ou aquém) do Princípio do Prazer, que nos governa. Uma “satisfação paradoxal” que testemunhava em certas manifestações clínicas, como por exemplo, nos sonhos traumáticos ou nas neuroses de destino, nas reações terapêuticas negativas e até mesmo nos sintomas de difícil solução.

Porém, a aceitação de uma destrutividade autônoma, não derivada da sexualidade ou não ligada a ela, era de difícil aceitação por parte de Freud, pois tratava-se de reconhecer a maldade irredutível que habita o ser humano. Somente 10 anos depois, ao publicar “O Mal-Estar na Cultura” (1930) Freud fornece à Pulsão de Morte uma dimensão autônoma e destrutiva, por excelência. Contrariamente ao caráter ruidoso das pulsões sexuais, afirmava que a pulsão de morte era silenciosa e um obstáculo à cultura, dado que esta encontra-se a serviço de Eros, buscando reunir os indivíduos, famílias, nações, em torno de uma grande unidade denominada humanidade. Em oposição, a pulsão de morte com sua força “demoníaca” tem por alvo a disjunção, a recusa da permanência.

É neste ponto que Lacan apresenta um novo modo de concebê-la: enquanto a pulsão sexual (de vida) é conservadora, tende à unificação e indiferenciação, pois além de construir uniões pretende mantê-las, a pulsão de morte é renovadora, produtora de diferenças, e, ao colocar em causa tudo o que existe, ela é potência criadora!

Ao abordar a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964) no Seminário XI a apresenta como indissociável da pulsão de morte. Se, por um lado, há a repetição da rede de significantes, daquilo que se encontra representado e que é veiculado pela palavra e pelas formações do inconsciente (atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas), há também a repetição daquilo que não se encontra simbolizado e insiste sob a forma de compulsão à repetição. Parte irrepresentável que persiste e insiste, sob a forma de repetição diferencial, e que aponta para a dimensão do que Lacan nomeou como Real.

As pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão; amalgamadas, revelam uma íntima relação entre sexualidade e morte, ou ainda, entre linguagem e silencio.  

Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1964/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1964/1998, p.195).

Para dar conta da “satisfação paradoxal” explicitada por Freud ao abordar a compulsão à repetição, Lacan irá enfatizar o campo do gozo. Em todo movimento pulsional existe a possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, numa ultrapassagem do Princípio do prazer. Tentativa, sempre fracassada, de buscar um gozo desde e para sempre perdido.

O gozo e o prazer não se equivalem. Marcus do Rio Teixeira (....) enfatiza que Lacan, em uma mesa redonda promovida pelo Colégio de Medicina dos Hospitais de Paris sobre “O lugar da psicanálise na medicina”, em 1966, assim definiu a relação entre o prazer e o gozo:

“Que diríamos nós do prazer? Que é a menor excitação, isso que faz desaparecer a tensão, a controla mais, portanto isso que nos detém necessariamente em um ponto de distanciamento, de distância muito respeitosa do gozo. Pois isso que eu chamo gozo no sentido de que o corpo se experimenta, é sempre da ordem da tensão, do acosso, do gasto, mesmo da proeza [exploit]”.

No Seminário 17, O avesso da psicanálise (1969-70) encontramos outra citação:

Basta partir do princípio do prazer, que nada mais é do que o princípio da menor tensão, da tensão mínima a manter para que subsista a vida. Isso demonstra que, em si mesmo, o gozo o transborda, e o que o princípio do prazer mantém é o limite em relação ao gozo.”

Gozo é precisamente o que Lacan denominou como pulsão de morte ou Mais além do Princípio do Prazer encontrado nos textos freudianos. O campo do gozo foi destacado pelo próprio Lacan como o “campo lacaniano”, porém encontramos dificuldades para delimitar esse conceito diante da extrema variedade de situações clínicas em que ele é empregado, seja pelo próprio Lacan ou pelos seus seguidores.

A noção de gozo está plenamente ancorada na corporeidade, no corpo vivo e na busca de satisfação pulsional. Entrelaçamento entre os conceitos de gozo, pulsão e corpo. Não há gozo sem um corpo vivo, afirmava Lacan. Do mesmo modo que a linguagem é condição do inconsciente, o corpo vivo é condição de gozo. Lacan nos pergunta no Sem 20: “Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza” (Lacan, 1972-1973, p.35).

Ao longo de seu ensino, surgirão diferentes formas de gozo, no plural: gozo fálico (gozo sexual, parcial, limitado); gozo do Outro (gozo não sexual, ilimitado); gozo do sentido (joui-sens), além do Gozo Outro (feminino),os quais Lacan buscou sistematizar em seus últimos Seminários dedicados ao nó borromeu.

Não teremos tempo para abordá-los hoje. Mas, para introduzir a questão, é preciso destacar que nos tempos da constituição do sujeito, como resultado das operações de alienação e separação e da vivência narcísica do Estadio do Espelho, nascerá, na melhor das hipóteses, um sujeito dividido, barrado, submetido às leis da linguagem e da castração, estruturado ao modo borromeano RSI. O que era vivido como um gozo ilimitado (gozo do Outro) por parte do pequeno Ser, se torna um gozo limitado (fálico), articulado a estrutura da linguagem e à lei do desejo, ao advir como sujeito.

A partir de tais operações constituintes, estrutura-se o que denominamos “fantasma fundamental”, que funciona como um freio diante do empuxo-ao-gozo inerente à exigência imperiosa da pulsão de morte, a qual busca a satisfação absoluta a qualquer preço. Sob a forma de compulsão a repetição, se repete indefinidamente, numa tentativa sempre fracassada de resgatar a suposta completude ou o gozo absoluto perdido, pois a estrutura fantasmática garante que todos estejamos ligados e ao mesmo tempo separados do objeto que supostamente nos completaria.

(“Que o fantasma nos proteja”, foi o título de uma apresentação que fiz anos atrás, numa Jornada da Letra, outra instituição da qual faço parte, em que enfatizava a importância do fantasma para garantir e sustentar nossa posição enquanto sujeito do desejo, apesar de toda a artilharia sintomática que ela produz).

Ao considerar o gozo como o problema maior com o qual cada sujeito tem que se confrontar, pode-se dizer que Lacan inscreveu a questão da pulsão de morte no coração de sua teoria e de sua concepção do tratamento psicanalítico.

Ponto indiscutivelmente importante que sustenta a ética da psicanálise, mais do que uma práxis para além do bem e do mal, numa experiência que possibilita a “travessia do pior que nos aspira, mais do que nos inspira” – o campo do gozo- para o despertar do desejo e suas possibilidades de realização, criação e invenção.

Lacan aponta para a oposição entre saber e gozo: onde há gozo, não há saber; onde há saber, não há gozo. Desse modo, o acesso ao saber inconsciente é o que uma análise pode produzir, concomitante a uma perda de gozo ao traduzi-lo em palavras, num processo de simbolização do Real.

Aqui também encontramos as maiores dificuldades no manejo da resistência durante o tratamento, pois a neurose se configura como um “não querer saber nada disso”. No fundo, um apego ao sintoma, seu “pacotinho de gozo”, do qual nos fala Isidoro Vegh (2005) no livro “As Intervenções do Analista”).

Mas, lá onde Freud se deparou com o “Rochedo da Castração” e o considerou como o ponto intransponível diante do qual o processo analítico paralisa ao encontrar os limites da sexualidade, Lacan encontrou a preciosidade do trabalho analítico. Pois, a castração como operação psíquica denuncia que há algo de não nominável, um resto não simbolizável que é da ordem do Real e que comparece na clínica sob a forma de repetição e de empuxo-ao-gozo que testemunhamos nas resistências durante o tratamento.

A lógica do discurso analítico sustenta que há um impossível de dizer e, portanto, de analisar, dimensão do Real que como dizia Lacan no Sem. 20 (Mais Ainda) “é o mistério do corpo falante, do inconsciente”. E desvendar esse mistério é nosso ofício!

Na atualidade, testemunhamos uma resistência crescente à dimensão do inconsciente, ao lugar do Outro, e um convite permanente ao gozo ilimitado e irrestrito. Se nesta perspectiva, o futuro da psicanálise como teoria e método clínico pode encontrar-se em risco, como muitos anunciam, é na contramão desse discurso dominante que temos que sustentar a radicalidade de nossa posição ética.

Ser lacaniano não é um ato de nominação.  Não basta o pertencimento a uma determinada escola ou instituição que segue seu ensino, tampouco fazer uso do idioma “lacanês”, ou ainda praticar as sessões de tempo variável ou “tempo lógico” como frequentemente são denominadas. O “autorizar-se de si mesmo e entre pares” para dizer-se lacaniano diz respeito a uma ética que, para além do Bem e do Mal, preserva o campo do gozo no cerne da experiência analítica.

Como argumenta Dominique Fingermann (2005): “para o Real impossível de suportar, não há remédio, mas tem tratamento: o sintoma é um deles, o psicanalista outro.”

Quem está disposto a “roer esse osso” de dar ao Real o seu lugar, ao ponto de ter “horror ao seu ato”, como nos diz Lacan? É nesse ponto que a resistência do analista se impõe, diante do desconforto de seu próprio ato, ao não responder às demandas que ele mesmo fomenta; em transformar o “sinto-mal” em angústia, e suportá-la até que o sujeito possa sustentar seu próprio desejo.

No Seminário 7 (A Ética da Psicanálise, 1959-60) Lacan nos fala sobre “a dimensão trágica da experiência da análise”, confrontação com a radicalidade da falta, com o Real, que tomado como causa, interroga todos os sentidos e significações.

Ao se distanciar da ideia freudiana sobre a pulsão de morte como retorno ao inanimado e inorgânico, Lacan aponta para uma “vontade de destruição” que não deve ser confundida com a agressividade, mas sim com vontade de recomeçar com novos custos: “Vontade de Outra coisa”, como afirma no Seminário 7 (Lacan,1959/1960).

Em “A Terceira” (1974), ele nos adverte: “Portanto, o que há de picante, em tudo isso, é que seja do Real que dependa o analista nos anos vindouros, e não o contrário.”

Dizer-se lacaniano, como já dissemos, não é um ato de nominação, tampouco dizer-se analista. Se estamos com Freud e Lacan nessa empreitada, sabemos que é o “des-ser” do analista que nos permite ocupar a nossa posição de semblante de objeto a no discurso analítico.

Afinal, quem dentre nós, é lacaniano? 

 

 

REFERÊNCIAS:

Coutinho Jorge, M. Fundamentos de Psicanálise: de Freud a Lacan. Vol 2.  Rio de Janeiro, Zahar, 2010.

Lacan, J. (1959-60) O Seminário 7: A Ética da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.

Lacan, J. (1972-73) O Seminário 20: Encore. Edição não comercial. 2010.

Lacan, J. (1969-70) O Seminário 17 : O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992

Lacan, J. (1964) O Seminário XI: Os quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

Rio Teixeira, M. Vestígios do Gozo. Salvador, Ágalma, 2014

Fingermann, D. e Dias, M.M. Por causa do pior. São Paulo, Iluminuras, 2005