A feminilidade retorna à cena. A afirmação pode parecer estranha - afinal, a feminilidade jamais deixou de estar na moda, de estar presente na cena social, nos discursos, muito menos, é claro, de existir na vida de cada mulher. Contudo, no cenário psicanalítico, nos últimos anos, ela havia cedido lugar a outros temas que despertavam mais a atenção. Ultimamente, vemos surgir aqui e ali textos e debates que retomam esse tema. Podemos pensar que isso se deve em parte às discussões sobre o feminismo e o papel das mulheres na sociedade.
Como se situa a psicanálise nesse debate? É preciso considerar que, diferentemente da multiplicidade de teorias que abordam a feminilidade a partir de pontos de vista históricos, políticos, sociológicos, etc., a psicanálise não se propõe como um saber que toma o sujeito enquanto objeto, mas, ao contrário, situa-o como inseparável da própria construção da teoria. Há que se considerar, portanto, como cada mulher se pensa na sua condição feminina. Tampouco se trata de apontar um caminho, uma solução para problemas, sejam sociais ou da vida privada. Por não se inserir em nenhum dos discursos que põem em marcha os laços sociais, a psicanálise é alvo das mais diversas críticas desde as primeiras publicações de Freud. Estas persistem até hoje, apenas com o sinal trocado - se, no seu início, Freud era acusado de “pansexualista”, hoje é chamado de “conservador”.
É preciso não esquecer que, se é possível criticar Freud nos dias de hoje, isso se deve, em grande parte, à sua honestidade intelectual, que o levou a expor nos seus textos suas dificuldades clínicas, seus impasses teóricos, sem ocultar nada dos leitores. Por isso é cômico, parar dizer o mínimo, ler autores que se gabam do grande feito de apontar erros de Freud que eles na verdade transcrevem dos próprios textos freudianos. Assim, no seu artigo sobre a “Organização genital infantil” (1923), ele confessa: “Infelizmente, só podemos descrever essas relações para o menino; falta-nos o conhecimento para os processos correspondentes na menininha”1. E, até 1924, ele ainda afirma: “De modo geral, no entanto, precisamos admitir que nossa compreensão desses processos de desenvolvimento na menina é insatisfatória, lacunar e vaga”2.
Além disso, seus comentários sobre a sexualidade feminina na segunda metade do Édipo soam quase como uma prescrição: “[...] é preciso que à mudança no sexo feita pela mulher corresponda uma troca no sexo do objeto”3. Esta observação de Freud é muito questionada, sobretudo a partir das descobertas posteriores da ciência acerca da importância central do clitóris no orgasmo feminino. Moustapha Safouan, por outro lado, assim comenta: “O que é essencial do ponto de vista da psicanálise, é conclusão nossa, não é a transformação do clitoridiano em vaginal, mas da libido autoerótica em libido objetal”4.
É preciso reconhecer que, malgrado a grande inovação teórica de Freud, que consiste em abordar a sexualidade, até então considerada pela medicina ocidental apenas no âmbito estritamente biológico, numa dimensão que Lacan, anos mais tarde, reconheceria como estrutural, o retrato da menininha que resulta do Édipo parece ser o de um menininho sem o pênis. “Privado da ferramenta do Simbólico que a linguística devia fornecer a partir de Ferdinand de Saussure, Freud só podia ficar na impossibilidade de diferenciar o órgão - aquele de que o homem é portador, ao passo que falta na mulher - do significante, necessário a cada um deles”5. O que está ausente da elaboração freudiana é a dimensão da alteridade feminina - percebida nas entrelinhas, mas ainda não plenamente reconhecida, uma vez que a posição feminina era classificada por ele na categoria do não-fálico, o que colocava a mulher do lado do menos, em uma posição de deficiência ante o homem.
Coube a Jacques Lacan retomar essa questão a partir de referências teóricas distintas daquelas de que Freud se havia valido, resgatando-a do terreno confuso em que ela havia sido lançada pelas leituras dos pós-freudianos. A conceituação do sujeito enquanto ser sexuado, porém, não ocorreu a Lacan de forma acabada. Durante os primeiros anos do seu ensino, ele se dedica longamente à releitura do Édipo freudiano, formulando-o como uma sucessão de tempos lógicos, onde o mais importante é o papel do significante do Nome-do-Pai, e despsicologizando a ameaça de castração a partir da definição do falo como significante.
Essa releitura é sintetizada no artigo “A significação do falo”, que constitui um marco da sua produção teórica nos anos 50. Nele, Lacan articula a sua teoria do significante, elaborada a partir de Saussure, à teoria freudiana do complexo de castração6. Isso lhe permite desfazer os equívocos introduzidos por autores pós-freudianos como Ernest Jones e Karen Horney, duramente criticadosno texto; o primeiro, pela sua concepção naturalista da repartição dos sexos - que, como nota Lacan, remete à religião -, a segunda, por sua visão culturalista da psicanálise, que constitui o extremo oposto da teoria lacaniana.
Somente a partir dessas precisões teóricas, podemos compreender o Penisneid, que deu origem a tanta polêmica, não como uma inveja do órgão, mas, como afirma Charles Melman, como uma especificidade da demanda feminina acerca da castração simbólica: “[...] a demanda feminina não é tanto de ter o objeto, mas de poder, como o homem, ser marcada por uma castração, quer dizer, ser definitivamente privada do objeto causa do desejo. O que ela quer não é tanto o objeto, mas a constituição, para ela, de uma falta de objeto”7.
Já nos anos 60, Lacan avança na sua elaboração teórica acerca do desejo, introduzindo o que ele mesmo chamou de sua invenção, o objeto a. Mas é somente em 1972, com a publicação de O aturdito e o início do Seminário 20, Mais, ainda [Encore] que ele introduz a versão final daquelas que ficaram conhecidas como as suas fórmulas da sexuação. O que essas fórmulas trazem de novo a respeito da teoria da sexualidade, tal como elaborada por Freud, e das reformulações feitas anteriormente pelo próprio Lacan? A definição do falo como significante, como vimos, data dos anos 50. A própria função fálica reafirma o papel fundamental do falo e da castração, que ele nunca negou. Isso leva Colette Soler a afirmar: “Mas as fórmulas lógicas ditas da sexuação, produzidas em 1972, não objetam ao falocentrismo do inconsciente” 8.
Quanto à importância do objeto a e da fantasia na constituição do desejo masculino, ele já havia tratado desse tema em diversos momentos. Ora, se esses importantes elementos teóricos não constituem propriamente uma inovação, qual a mudança introduzida pelas fórmulas no que diz respeito ao que constitui o que chamamos de a teoria lacaniana da sexuação?
Para Soler, a novidade está na afirmação de Lacan: “Por ser, na relação sexual, em relação ao que se pode dizer do inconsciente, radicalmente o Outro, a mulher é aquilo que tem relação com esse Outro”9. Lacan também afirma, nesse mesmo Seminário: “O Outro, na minha linguagem, só pode ser portanto o Outro sexo”10.
Segundo ela: “Essa é uma tese nova, creio eu [...]. Quando dizemos ‘A mulher é Outra’, é enquanto ela está na relação sexual como Outro, com um gozo outro”11. Trata-se aqui da dimensão da alteridade feminina, que não estava explicitada na teoria freudiana porque, para Freud, os seres sexuados se dividiam em dois grupos por sua relação ao falo, não havendo uma especificidade da posição feminina. Diferentemente de Freud, Lacan não vai dizer que as mulheres não têm acesso ao falo, mas que estão enquanto não-todas na função fálica.[...] quando escrevo esta função inédita na qual a negação cai sobre o quantificador a ser lido não-todo, isto quer dizer que quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica.12
Ser não-toda inscrita na função fálica significa ser não-toda concernida pelo gozo fálico, pois ela tem também acesso a um gozo Outro, “suplementar” 13. A proposição lacaniana de um gozo Outro, além do falo, ao qual o sujeito na posição masculina não teria acesso, introduz uma mudança radical na teoria psicanalítica acerca da posição feminina. Lacan afirma que uma mulher tem acesso ao gozo fálico tanto quanto o homem, mas, além desse gozo, experimenta também o gozo Outro, que este desconhece. Com essa afirmação, ele introduz uma modificação importante na teoria freudiana, que situava a mulher como castrada, no sentido de não-fálica, ou seja, do lado do menos. No que diz respeito aos gozos, para Lacan, ela está do lado do mais.
Charles Melman destaca a dimensão da alteridade feminina como um ponto fundamental na constituição do desejo - e isso não somente no sentido específico do desejo heterossexual. Ou seja, o lugar Outro da posição feminina se estabelece independentemente da anatomia e da escolha do objeto do desejo.
[...] essa dimensão da alteridade é, portanto, a condição do desejo, do endereçamento desse desejo e de seu exercício. Poderíamos nesse aspecto ressaltar que, mesmo no interior desses casais que buscam realizar a homogeneidade – casais homossexuais –, essa dimensão da alteridade, entretanto, não deixa de se revelar em ação entre eles, ou seja, malgrado essa aspiração à semelhança, à similitude, haverá entre eles uma repartição, e que fará com que um ou uma se encontre, em relação ao outro, sustentando essa posição. 14
Para Soler, o destaque conferido por Lacan à alteridade feminina e ao gozo Outro leva a concluir que essa elaboração teórica constitui um ponto de virada em relação ao seu percurso anterior, no qual ele mantinha, de certa forma, uma continuidade com a teoria freudiana da sexualidade, com algumas atualizações. Para a autora, esses textos introduzem a identidade sexual no âmbito do gozo.
Se a gente se volta para a questão da identidade sexual, a tese de Lacan durante muito tempo, até 1972, precisamente, foi: “Não há identidade sexual”. [...] Em 1972 ele vai introduzir evidentemente algo diferente, algo novo no Aturdito [...] com o que nós chamamos agora as fórmulas da sexuação. As fórmulas da sexuação designam duas identidades sexuadas, duas identidades de gozo – a toda-fálica e a não-toda fálica. E com isso, pela primeira vez, Lacan introduziu um fator identitário no nível do real do gozo.15
Fixemos, então, alguns pontos. Primeiro: ao postular duas formas de o sujeito, enquanto um X indeterminado, se situar ante a função fálica, Lacan não está se referindo à anatomia. Isso não é apenas uma leitura, mas é dito por ele explicitamente: “Tomemos primeiro as coisas do lado de todo x é função de ? x, quer dizer, do lado em que se alinha o homem. A gente se alinha aí, em suma, por escolha ? as mulheres estão livres de se colocarem ali, se lhes agrada”16, lembrando que, para Lacan, não se trata de uma escolha consciente, de um voto.
Porém, isso é bastante diferente de dizer que “Lacan não está falando de homem e mulher nas suas fórmulas”, como às vezes se escuta. Embora não esteja falando no sentido anatômico, ele está falando, sim, de posição masculina e feminina, enquanto posições de gozo. Além disso, dizer que as posições de gozo descritas por Lacan não se confundem com o sexo anatômico não significa que, para cada sujeito, a posição de gozo seria estabelecida aleatoriamente em relação ao sexo anatômico, o que resultaria - é fácil calcular - num percentual de 50% de correspondência. Ora, uma simples checagem do nosso entorno permite constatar que essa distribuição aleatória não ocorre na realidade.
Não há essência do masculino e do feminino, por conseguinte, não há obrigação: a anatomia não é o destino. Tendo cada um a liberdade, diz Lacan, de se alinhar de um lado ou do outro, existe escolha para ambos os sexos. [...] Entretanto, convém notar que, nessa matéria, não pode tratar-se de uma liberdade por indiferença, porque o significante está ligado à anatomia. É um órgão do corpo que dá sua representação ao significante falo, e por isso se diz que um indivíduo é menino ou menina, antes de qualquer posição do sujeito. Logo, se há uma escolha, é pelo menos uma escolha vivamente aconselhada.17
Segundo ponto: posição de gozo não é escolha de objeto. As posições masculina (todo-fálico) e feminina (não-todo fálico) não dizem respeito exclusivamente ao casal heterossexual. Este é outro aspecto que suscita mal-entendidos, seja por uma leitura superficial do texto lacaniano, seja por oportunismo daqueles que o criticam. Guardemo-nos, portanto, de acusações contra Lacan por reafirmar a “ordem patriarcal” ou de excluir os gays no quadro das fórmulas da sexuação, acusações cuja pobreza intelectual causa um grande constrangimento.
Há ainda outra leitura que também confunde posição de gozo e escolha de objeto, porém com uma diferença importante: ela reconhece que Lacan não exclui os gays, mas toma o fato de a posição toda-fálica incluir tanto homens (heterossexuais ou homossexuais), mulheres (heterossexuais ou lésbicas), travestis, etc., como “prova” do caráter “não binário” da repartição dos sexos. Deveria ser simples notar que Lacan frisa todo o tempo que a relação com a função fálica - e, portanto, com o gozo - é o que define para ele a divisão dos seres sexuados em dois campos, a forma como cada um ou cada uma expressa a sua sexualidade não constituindo um ponto relevante.
O terceiro ponto talvez traga algo de novo para alguns: a partir das fórmulas, não se pode estabelecer nenhuma essência masculina ou feminina. As posições do todo-fálico e não-todo fálico dizem respeito a formas diferentes de se posicionar ante a função fálica, totalmente concernido por esta ou não totalmente concernido, mas não estabelecem nenhum juízo de atribuição. Isso significa que não se pode extrair dessas posições nenhum juízo sobre o que seria característico do masculino ou feminino.
Insisto em tornar sensível o esforço feito por Lacan para formular uma diferença que não decorre do juízo de atribuição, isto é, que não funciona de acordo com a forma – os homens são isto e as mulheres são aquilo –, forma esta em que se manifestam todas as ideologias sobre a questão, e que sempre supõe, por trás da atribuição, a referência a uma substância.18
A atribuição de características masculinas e femininas não diz respeito ao simbólico da função fálica, mas ao imaginário do semblante, termo que Lacan emprega no seu Seminário 18: de um discurso que não fosse do semblante com o sentido de uma forma de apresentar-se ante o(a) parceiro(a) enquanto ser sexuado, e que ele denomina, na mulher, de mascarada, e no homem, de desfile ou parada [parade]. Os traços imaginários que constituem o semblante são fornecidos pela cultura e “[...] naturalmente, derivam essencialmente das modalidades, eu diria, próprias a uma cultura, de se dar na representação dessa identidade sexual”19.
Para Lacan, o que leva à repartição dos seres sexuados em duas metades, grosso modo? Não se trata de um processo histórico, de uma situação cultural, mas de um efeito da linguagem. [...] Salientamos a esse respeito que, se a escolha pode concernir o objeto, a identidade sexual depende forçosamente de um imperativo categórico, quer dizer, fundado pelo Um fálico: se tu queres ser Um tu mesmo, tu não tens outra escolha senão que seja a título de homem ou de mulher, e se tu pretendes mudar de sexo, esse imperativo se mostrará, por ser sustentado apenas pela dimensão imaginária, mais virulento ainda (é o caso de dizer).20
Em termos topológicos, esse imperativo produz um corte que gera dois campos.
[...] um corte no simbólico, espaço aberto, o divide em um espaço fechado, bordado, e um espaço complementar, aberto, não contendo seu limite. Se esse corte é o fato do falo, haverá uma repartição necessária dos sujeitos conforme eles ocupem o espaço contendo o falo (“homens”) ou que eles ocupem o espaço aberto que não contém o limite (“mulheres”).21
Para alguns, contudo, isso se deve à “heteronormatividade compulsória”. Mas o que vem a ser isso? Esta noção ganhou destaque nos últimos tempos e passou a ser empregada de forma acrítica, inclusive por psicanalistas, sem questionar seus fundamentos. Vejamos uma definição presente em uma obra representativa dessa concepção.
Os homens e as mulheres são construções metonímicas do sistema heterossexual de produção e reprodução que autoriza a sujeição das mulheres como força de trabalho sexual e como meio de reprodução. Essa exploração é estrutural, e os benefícios sexuais que os homens e as mulheres heterossexuais extraem dele, obrigam a reduzir a superfície erótica aos órgãos sexuais reprodutivos e privilegiar o pênis como único centro mecânico de produção do impulso sexual.22
Para não ingressar no território do absurdo, deixemos de lado as implicações antropológicas de tal noção, ou seja, a suposição de uma conspiração, uma espécie de plano maligno de todas as sociedades, de todas as culturas, ao longo de milênios, para colar compulsoriamente as noções de “homem” e “mulher” à anatomia de macho e de fêmea. Que psicanalistas utilizem essa expressão é motivo de espanto. Eles acreditam, sinceramente, que a heterossexualidade é resultado de um complô universal ao longo da História? A crermos nisso, na China do século XVII, na Grécia Antiga, na Europa moderna e entre os aborígenes australianos antes da chegada dos colonizadores europeus, operava um “sistema heterossexual de produção e reprodução” com o objetivo de “privilegiar o pênis” (sic).
As origens teóricas de tais colocações podem ser encontradas no meio acadêmico norte-americano, influenciado pelo pós-estruturalismo, o qual extrapola concepções do estruturalismo francês, adicionando elementos teóricos de procedências diversas, além de laivos da contracultura. O resultado dessa mistura é uma estranha leitura da dicotomia natureza/cultura: por um lado, é mantida a tese estruturalista de que não é possível reivindicar uma pertença à natureza, uma vez que os seres da linguagem não são movidos por instintos, que suas relações amorosas, familiares, sociais, etc., não são resultado de ciclos naturais.
Por outro lado, se extrai dessa tese uma concepção depreciativa da cultura, considerada como algo falso, imposto. O que se contrapõe à cultura, nessa perspectiva, não é mais a natureza, um estado adâmico, instintivo ? o qual já foi descartado como impossível ?, mas algo que poderíamos denominar, de forma aproximada, o “subjetivo”. Este termo é aqui empregado de forma aproximada, uma vez que essa teoria não admite a hipótese de um sujeito. Trata-se antes de algo que seria mais bem descrito como aquilo que denominamos em psicanálise o registro narcísico, do eu. O que se reivindica, nesse caso, é o direito de cada um afirmar sua vontade, sua “subjetividade”, contra a cultura, concebida como essencialmente intrusiva.
É possível identificar algumas consequências dessa estranha redefinição da dicotomia natureza/cultura: primeiramente, ela rompe com a noção da cultura como algo impessoal, que não emana de nenhum lugar identificável ? o que seria, ironicamente, o mais próximo, para o sujeito, da ideia de “natureza” ?, e, ao contrário, a concebe como algo que é colado, imposto ? a quem? a quê? não se sabe como um sujeito ou indivíduo poderia constituir-se “fora” da cultura e, em seguida, senti-la como uma imposição ?, quase como se houvesse uma intencionalidade, o que dá margem a uma ideia persecutória da cultura.
Em resposta a essa imposição, esse sujeito, ou indivíduo, poderia aceitar ou questionar essa imposição “antinatural”, submetendo cada traço cultural a um questionamento permanente, numa espécie de hiperconsciência da diacronia. Acrescentem-se a essa concepção confusa alguns textos de feministas da última geração, junte-se a noção de gênero, cuja divulgação se deve a Robert
Stoller - ainda que não tenha sido criada por ele -, e teremos os fundamentos da teoria do gênero, a qual tem Judith Butler como uma de suas principais teóricas.
O gênero não deve ser construído como uma unidade estável ou um locus de ação do qual decorrem vários atos; em vez disso, o gênero é uma identidade tenuemente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero.23
Essa definição coloca alguns problemas, dos quais o primeiro pode ser resumido da forma mais simples: se não há um sujeito, um “eu permanente”, quem executa esses “gestos, movimentos e estilos corporais”? Como o gênero, enquanto “repetição estilizada de atos”, se constitui? A partir de uma imposição social ou de uma escolha? No caso desta última, seria um ato volitivo ou inconsciente? Por mais que procuremos, não encontraremos em Butler respostas a tais questões ? ou melhor, encontraremos algumas respostas, porém estas executam infindáveis rodeios que, sem chegar a uma definição, só fazem aumentar as dúvidas. Na verdade, faz parte do estilo da autora não responder diretamente a tais questões, mas fornecer respostas que reproduzem com seu estilo a fluidez e a imprecisão da própria noção de gênero. Esse estilo evasivo é não somente reconhecido como também louvado pelos seus seguidores.
Longe de constituir um estilo “intimidante” de escrita, tal como foi caracterizado por uma crítica, trata-se de um estilo tão dialético, de um modo de escrita tão ativo, na verdade, tão performativo, que exemplifica a própria performatividade.
Se o estilo de Butler é performativo, faria pouco sentido para ela teorizar o sujeito incoerente, incompleto e instável utilizando frases que parecessem lúcidas, conclusivas e epistemologicamente “sólidas”.24
Acerca das características de tal estilo, diz Melman:
Tratar-se-ia de uma promoção da “alíngua” lacaniana, cuja aplicação prática nós veríamos? Na realidade, não se trata para ela de jogos de escrita e muito menos de espírito, mas de uma anulação do poder e da atração exercida pela escrita reduzida a grafismos inéditos. Trata-se, de fato, de uma forma literária que, a meu ver, não tem precedente já que nem o significante nem a letra são aí convidados. Restando o traço impresso do que teria podido ser e que foi foracluído.25
Por conta do seu “estilo performativo”, a autora pode evitar definir claramente o modo como ocorre o processo de constituição do gênero:
Existe uma idealidade, quando não uma dimensão fantasmática, para as normas culturais de gênero, e mesmo que humanos emergentes busquem reiterar e acomodar essas normas, eles certamente também tomam consciência de uma persistente lacuna entre esses ideais ? muitos dos quais são conflitantes uns com os outros ? e os nossos vários esforços de corporificação vividos, nos quais o nosso próprio entendimento e o entendimento dos outros têm finalidades opostas. Se o gênero vem a nós em um primeiro momento como uma norma de outra pessoa, ele reside em nós como uma fantasia ao mesmo tempo formada pelos outros e parte da nossa formação.26
Observem que essa descrição ? que prossegue por alguns parágrafos ? supõe uma instância (“nós”) que é mantida na indefinição (trata-se do eu, da “pessoa”, do sujeito do inconsciente, de tudo isso ou de nada disso?) e que abrigaria “fantasias” (conscientes, inconscientes? Como se constituiriam tais fantasias?), uma “dimensão fantasmática”. Por outro lado, haveria uma instância externa (“normas culturais”, “normas de outra pessoa”) que interagiria com a instância do “nós” para tentar impor um gênero. Antes de sofrer a imposição dessas “normas sociais”, esse “nós” se teria constituído de forma autônoma, sem o Outro da linguagem, sem gênero? Não é possível saber a quem essas normas tentariam ser impostas, pois, ao mesmo tempo, a autora não se cansa de negar a existência de um sujeito: “[...] o aparecimento do gênero é frequentemente confundido com um sinal de sua verdade interna ou inerente [...]”27. “Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido [...]”28.
Ultimamente, temos visto textos de psicanalistas que tentam aproximar as proposições teóricas de Butler do ensino de Lacan. Alguns acreditam sinceramente - porém de forma equivocada - poder tomar a noção de gênero como um substituto para aquilo que os psiquiatras e psicólogos chamavam no século passado de “componente psicossocial” do sexo, próximo à noção de identidade sexual imaginária. O fato de a psiquiatria contemporânea empregar o termo gênero nesse sentido só aumenta o equívoco. Para os teóricos do gênero, essa noção não tem de forma alguma o sentido de uma interpretação individual/social do sexo, mas, ao contrário, o próprio sexo é uma criação do gênero. “O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os sexos são estabelecidos”29.
Outros vão além e fazem apelo à comoção, referindo-se ao sofrimento psíquico e social das minorias, superpondo a situação social à teoria, numa aparente tentativa de extrair da primeira uma “prova” de que, para combater o preconceito e a violência contra gays, lésbicas, travestis, etc., a solução é adotarmos a noção de gênero porque ela reconhece a diversidade sexual. Em uma época de grande radicalização política, quando grupos de extrema-direita abrem combate aos estudos do gênero, esse argumento maniqueísta pode convencer muita gente.
Há ainda alguns - felizmente poucos - que defendem que a teoria lacaniana deveria ser relida a partir das teses de Butler em um movimento inverso em relação àquele executado por Lacan, que se apropriava de conceitos de outros campos do saber, como o significante saussuriano, torcendo-os e modificando-os para fazê-los funcionar no corpus teórico da Psicanálise. Aqui se visa o objetivo oposto: alterar, modificar a teoria lacaniana para adaptá-la às teses da teoria do gênero (e tentar convencer os estudantes e profissionais que se aproximam de Lacan de que esse é um movimento coerente com o seu ensino). Apesar de tais distorções, creio ser possível cotejar, de forma clara, as principais teses de Butler e Lacan e verificar se elas convergem, como pretendem tais autores, ou se elas se contradizem.
Primeiramente, notem que, ao reduzir tudo o que seria da ordem de uma possível identidade sexual a um conjunto de condutas, estilos, etc., encenados em um jogo performativo, a noção de gênero questiona e invalida a própria noção de identidade, ainda que imaginária. Ao mesmo tempo, ela exclui qualquer referência às leis da linguagem, anteriores e exteriores ao sujeito. Ora, o esforço teórico de Lacan consistiu em grande parte em mostrar que o sujeito, para se constituir, tem de passar pela alienação aos significantes do Outro, que preexistem ao nascimento do seu corpo - não há sujeito fora da linguagem. A teoria do gênero de Butler, ao contrário, reduz a linguagem às falas dos interlocutores, veículos de transmissão de injunções e estereótipos sociais30. Essa concepção exclui tudo o que diz respeito ao Simbólico no sentido lacaniano, o qual ela recusa explicitamente.
A injunção de tornar-se sexuado nos modos prescritos pelo Simbólico leva sempre ao fracasso e, em alguns casos, à revelação da natureza fantasística da própria identidade sexual. A afirmação do Simbólico como inteligibilidade cultural em sua forma presente e hegemônica consolida efetivamente o poder dessas fantasias, bem como dos vários dramas dos fracassos da identificação. A alternativa não é sugerir que a identificação deva tornar-se uma realização viável. Mas o que parece realmente acontecer é uma romantização ou mesmo uma idealização religiosa do “fracasso”, uma humildade e limitação diante da Lei, o que torna a narrativa de Lacan ideologicamente suspeita.31
Ao que parece, a autora faz uma confusão entre o que Lacan situa no campo da impossibilidade e o que ele denomina impotência, tomando os limites determinados pelo Simbólico no sentido imaginário de “fracassos”, que ela aproxima de uma suposta “idealização religiosa”. Ora, limites não são fracassos e o reconhecimento das leis da linguagem não tem nada em comum com um ideal, seja religioso ou laico. Ainda no que tange ao Simbólico, ela define o falo, que é, como sabemos, um conceito de importância fundamental na teoria da sexuação de Lacan, de uma forma bastante peculiar para quem possui um mínimo conhecimento da teoria lacaniana.
Consideremos que “ter o falo” pode ser simbolizado por um braço, uma língua, uma mão (ou duas), um joelho, um osso pélvico, uma série de coisas similares ao corpo e deliberadamente instrumentalizadas. Os atos que desprivilegiam o falo e o subtraem da forma normativa de troca heterossexual e, ao mesmo tempo, reciclam-no e tornam a privilegiá-lo entre as mulheres utilizam o falo para romper a cadeia significante na qual ele convencionalmente opera.32
É possível perceber que a autora entende o falo não como um significante - seja na definição de Lacan ou de Saussure -, mas como um signo, tal como o define Charles Sanders Peirce: “Um signo é aquilo que representa algo para alguém”33. Não somente isso, mas um signo cujo referente34 seria o pênis, o que ela busca deslocar para outras partes do corpo, para criar aquilo que chama de “o falo lésbico”. Independentemente de qualquer discussão de tal teoria, é evidente que esta não é compatível com a teorização lacaniana do falo como um significante. Há uma espécie de confusão inextrincável entre significante e órgão. Quanto à ideia do falo como algo que opera “convencionalmente” na cadeia significante, não fica claro em que sentido a operação do falo na cadeia significante poderia ser “convencional”.
Da mesma forma, Butler exclui o Real, em várias das acepções que podemos ter desse conceito na teoria lacaniana:
1) Enquanto real do corpo, ou seja, o organismo. Nascemos com um corpo, antes de nos constituirmos como sujeitos. Que o sujeito já nasça num “banho de linguagem” e já seja falado antes mesmo da concepção do seu corpo, isso mostra que ele não é idêntico a esse corpo. Assim sendo, tal corpo, disjunto do sujeito, em sua materialidade biológica, não faz parte do Simbólico, tampouco do Imaginário, embora venha a ser tomado pela linguagem e moldado pela imagem.
A condição de reprodução da vida – que não depende em nada do simbólico e, neste sentido, se pode dizê-la real (mesmo se a ciência tenta colocar seu grão de sal na reprodução, ela não o faz ex nihilo) – precede o engendramento do corpo pela linguagem.35
Butler, por sua vez, nega qualquer possibilidade de considerar o corpo como real, uma vez que, para ela, é o performativo que constitui o corpo. “O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade”36.
2) Enquanto real do gozo. Como sabemos, para Lacan, o gozo não se confunde com o prazer, tampouco com a satisfação, tal como supõe o senso comum. Além disso, conforme a sua relação com a função fálica (que diz respeito, lembremos, ao significante fálico e à castração), o sujeito experimentará diferentes formas do gozo ? gozo fálico, gozo Outro ? que implicam posições de gozo distintas para os sexos, ou seja, implicam a diferença sexual. Lembrando ainda que, para Lacan, o gozo também pressupõe, necessariamente, o corpo, ou seja, a anatomia não é algo indiferente no que diz respeito ao gozo ? “um corpo, isso se goza”37.
As teorias do gender podem justamente nos explicar que o sexo é uma fabricação do discurso, isso é em grande parte verdade, mas há um gozo do corpo que não é fabricado pelo discurso, o discurso se limita a lhe dar forma. Ele lhe dá forma de Um e também lhe dá sentido. Falta a essas teorias do gender distinguir o real do imaginário e do simbólico.38
3) Enquanto real da não existência da relação sexual. Para Lacan, esta não é um dado simbólico ou imaginário, não é efeito da tradição, tampouco pode ser reduzida às desavenças do casal. Se seguirmos à risca a teoria de Butler, a tese da não relação sexual, até mesmo esta expressão, simplesmente deixa de ter qualquer sentido, uma vez que afirmar a inexistência de uma relação [rapport] entre os sexos pressupõe obviamente a diferença sexual. Não havendo sexo, apenas gênero, não se coloca a questão se existe ou não essa relação, pois os gêneros, por definição, não se reportam uns aos outros (são “não binários”). Vimos acima um exemplo dos malabarismos intelectuais que são praticados pelos autores que tentam nos convencer de que, ao propor a repartição dos sexos em dois campos, a teoria lacaniana da sexuação fornece um argumento a favor do “não binarismo” e da multiplicidade dos gêneros.
Acerca dessa noção do “não binarismo”, temos a posição de Zizek que, ao pretender defender a teoria lacaniana das críticas de Butler e seus seguidores, termina corroborando as suas teses: “[...] Esse é também o problema da acusação de que a diferença sexual envolve uma ‘lógica binária’: na medida em que a diferença é real/impossível, ela é precisamente não ‘binária’[...]”39. Já Lacan afirma: “Que o sexo é real, não há a menor dúvida. E sua própria estrutura é o dual, o número dois. O que quer que pensemos, existem apenas dois, os homens e as mulheres”40. Acerca do que Zizek diz sobre Lacan, pode-se citar o que o próprio Lacan disse sobre os comentários de Ernest Jones acerca da teoria de Freud: “Divertimo-nos sobretudo com seu êxito em articular, pautado na própria letra de Freud, uma posição que lhe é estritamente oposta: um verdadeiro modelo num gênero difícil”41.
Restaria somente o Imaginário da encenação performativa, a forma de se apresentar para o outro com determinados comportamentos, atitudes, modos de ser, que remeteriam a um gênero ? próximo do que Lacan denominou de semblante. Porém, lembremos que Lacan, mesmo no período do seu ensino anterior às fórmulas da sexuação, jamais supôs que o sexo pudesse se resumir ao semblante. É importante frisar também que o Imaginário de que se trata no gênero é antes um Imaginário sem eu, se podemos dizer assim, pois, uma vez que nem mesmo se supõe um sujeito por trás do gênero, tudo se reduziria a um jogo de máscaras no qual não haveria nenhum rosto por trás das máscaras. A desconstrução das identidades desconstrói, no mesmo processo, o sujeito.
Ora, se não há sujeito, logo, não pode haver responsabilidade do sujeito. Se a identidade sexual não é nem uma identidade e nem sexual, mas um mero semblante, encenação de gestos, condutas, 39 ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 292. etc., puramente imaginária, sem qualquer referência às leis da linguagem, à castração simbólica, que sentido teria o esforço teórico de Lacan, de recorrer à lógica modal, elaborar o conceito de função fálica para postular duas posições ante essa função, como todo-fálico e não-todo fálico? Se o Real, tal como é definido por Lacan, não é considerado em várias das suas acepções; se a diferença sexual simplesmente perde o sentido, porque os gêneros são “não binários”; se a não relação sexual está de antemão fora de tal teoria, como esta poderia ser articulada à teoria da sexuação formulada por Jacques Lacan? Como seria possível pensar a psicanálise numa perspectiva lacaniana sem sujeito, sem Simbólico e sem Real?
No que se refere à feminilidade, esta é reduzida à mascarada, numa hipérbole dessa noção. Interessa a Butler destacar e ampliar a noção de mascarada para utilizá-la como argumento de sustentação da sua noção de gênero e afirmar que não há sexo, apenas uma encenação, o que ela argumenta no seu “estilo performativo”: “[...] se o ‘ser’, a especificação ontológica do Falo, é uma mascarada, então isso pareceria reduzir tudo a uma forma de aparência, aparência de ser, com a consequência de que toda a ontologia do gênero é reduzível a um jogo de aparências”42.
Finalmente, em vista do que foi dito acima, poderíamos perguntar como se situaria nos dias de hoje uma mulher, sobretudo uma mulher jovem, que inicia a sua vida sexual e amorosa, não mais no âmbito da sexualidade infantil, se ela entender todos os traços relativos à feminilidade, sejam o gestual, a postura, o vestuário, a conduta, etc. ? a lista é imensa ?, como uma encenação imposta pela sociedade patriarcal à qual ela estaria submetida. Se tudo aquilo que ela assume como sua identidade sexual for entendido por ela dessa forma, ela deve necessariamente manter uma desconfiança permanente em relação a todos os traços culturais da feminilidade e se engajar numa missão infindável de reinventar o que seria seu gênero43.
Acrescente-se a isso que, sendo a posição feminina, segundo essa concepção, uma pura mascarada, sem, absolutamente, nenhum lastro simbólico ou real, um indivíduo com uma anatomia masculina pode reivindicar a pertença à classe das mulheres tanto quanto ou até mais do que ela. Na verdade, se seguimos a argumentação de Butler, o travesti deve ser considerado mais legitimamente44 uma mulher, uma vez que nele a feminilidade seria vivenciada sem o “álibi” da anatomia, em sua essência de pura aparência, como uma paródia. “Ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingência”45.
Não somente isso: para uma mulher com uma anatomia feminina, os traços que dizem respeito à sedução, à forma de atrair o desejo masculino heterossexual, são definidos pelos movimentos políticos como índices de uma posição degradante para ela, que se estaria rebaixando, se humilhando, ao se colocar numa posição de objeto sexual do homem. Uma mulher escuta insistentemente que a presença de tais traços nela constitui um “estereótipo de gênero” imposto pela sociedade patriarcal. Em contrapartida, ela percebe socialmente que em um indivíduo com uma anatomia masculina, os mesmos traços da sedução feminina são conotados positivamente, merecedores de elogio, por serem entendidos como subversivos da heteronormatividade.
Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino quanto um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino.46
Esse ponto de vista está presente no emprego de expressões como feminilidades e masculinidades, muito comum no discurso dos movimentos que se orientam pela noção de gênero. Tais expressões no plural podem, à primeira vista, ser entendidas por quem segue uma orientação teórica psicanalítica como indicadoras de uma ênfase no sujeito. Poderíamos pensar que a forma como a feminilidade e a masculinidade são vividas constitui uma experiência única, e por isso deveriam ser escritas no plural. Porém, observem que, para a psicanálise, o fato de que o sintoma seja por definição o sintoma de um sujeito, não impede que o conceito de sintoma seja teorizado no singular. Isso vale para outros conceitos, como o inconsciente, a pulsão, etc. O que está implícito no uso de termos como feminilidades e masculinidades é algo muito diferente: trata-se de desconstruir a própria ideia de feminilidade e de masculinidade, negar a diferença sexual, a diferença dos gozos e substituí-la pela noção do gênero enquanto variedade potencialmente infinita.
Há poucos anos, a ONU elegeu uma personagem de histórias em quadrinhos, a Mulher Maravilha, como representante de uma “campanha para o empoderamento e mulheres e meninas”. A personagem, porém, logo foi demitida do cargo, por assim dizer, atendendo a uma petição assinada por milhares de pessoas que criticavam o fato de ela ser “explicitamente sexualizada” (sic). O que significa este termo? “Explicitamente sexualizada” é um termo ? que também pode ser encontrado como “hipersexualizada” ou “hiperfeminina” ? que deve ser entendido como ter um corpo com caracteres sexuais nitidamente identificáveis como femininos: seios grandes, boca com lábios carnudos, quadris largos, etc. ? e, devemos acrescentar: ter uma vagina. Ou seja, a ONU concordou em retirar, de uma campanha dirigida a mulheres e meninas, uma personagem-símbolo pelo fato de esta ter uma anatomia... feminina.
Como uma mulher pode, então, construir sua identidade sexual, mesmo que imaginária, nessa situação? Como ela pode se reconhecer enquanto mulher? Tais ditames, característicos da nossa época, exercem uma pressão imaginária evidente sobre ela. Isso só faz aumentar a inquietação, a insatisfação que atormenta aquela que, por ser não-toda, experimenta o gozo Outro, fora do Simbólico. Ela, por certo, está no Simbólico, mas vivencia o gozo que não está e que, por isso mesmo, não pode ser colocado em palavras. Em um mundo constituído pela palavra, como ela traduz sua experiência?
Para as mulheres, reitera-se a insatisfação que Lacan chamou de “ainda”. Se não se tomar esse ainda do lado do gozo, do famoso “gozo Outro”, mas do lado do desejo, do desejo que permanece em tensão, o que é que uma mulher busca, ainda e teimosamente, no campo do desejo sexual e do amor? 47
Mas o problema não se encerra aí: além de definir a posição de suscitar o desejo masculino como degradante, é possível encontrar leituras da própria relação sexual entre um homem e uma mulher como violenta em si mesma. Autoras como Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon, representantes de uma corrente feminista radical (radfems) argumentam que o ato sexual mutuamente consentido entre um homem e uma mulher pode ser considerado um estupro:
Até aqui, o ponto de vista dos homens foi o de fazer uma distinção nítida entre o estupro, de um lado, e as relações sexuais, de outro; o assédio sexual, de um lado, e o erotismo, de outro; a pornografia e a obscenidade, de um lado, e o erotismo, de outro. O ponto de vista masculino é definido pela distinção. A experiência das mulheres não permite distinguir tão claramente os eventos ordinários, normais, dos abusos [...]. Nossa posição é que a sexualidade que toma precisamente essas formas ordinárias nos estupra frequentemente.48
Catharine MacKinnon afirma ainda: “[...] a maior diferença entre o ato sexual (normal) e o estupro (anormal) é que o normal acontece com tanta frequência que não é possível fazer as pessoas perceberem algo de errado nele”49. Como observa muito bem Francisco Bosco, nessa perspectiva, “O que está em jogo não é uma condenação da violência, mas uma suspeita difusa sobre toda experiência heterossexual”50. Não somente isso: trata-se de um desrespeito e um insulto às mulheres que foram efetivamente vítimas de violência sexual.
Portanto, uma mulher bem informada e à altura da subjetividade do seu tempo, como dizia Lacan, aprende hoje que a sua identidade sexual não é senão um semblante, uma encenação, um jogo performativo que lhe foi imposto pela cultura patriarcal. Que o fato de ter uma anatomia feminina a torna “hipersexualizada”, o que constitui uma concorrência desleal em relação àqueles que se nomeiam como mulheres e que têm uma anatomia masculina. Além disso, ela escuta de outras mulheres que supostamente a representam que ela não tem desejo, que em uma cópula com um homem, mesmo na situação de um ato consentido, ela é vítima de um estupro. Nesse contexto, como ela pode se situar enquanto mulher?
Melman ressalta o caráter incômodo, perturbador da alteridade feminina tanto para os homens quanto para as próprias mulheres, que, ao buscar uma referência simbólica para tal alteridade, só encontram o falo. Acrescentemos que, ao tentar se sustentar em uma construção imaginária, elas encontram imagens acerca das quais lhes dizem que são falsas, artificiais ou alienantes.
Em seguida, justamente sua realização enquanto mulher se revela singularmente complexa e com muita frequência insatisfatória aos seus próprios olhos. E, portanto, há para ela mesma, devido ao fato de sustentar esse lugar bizarro, estranho, mal localizado, mal cartografado, não respeitado como tal, há - se eu posso dizer assim - essa insatisfação de bom grado nativa. Porém, essa insatisfação não é menos aquela do parceiro, na medida em que esse lugar vem marcar justamente o limite do seu poder, do exercício do seu poder, da sua autoridade. E ele marca igualmente o fato de que ele não poderá jamais apreender perfeitamente, completamente, aquela que causa o seu desejo, a não ser lançando-a na escravidão. Dito de outra forma, a posição que ocupa a mulher vai ser assim geradora - eu digo de forma incisiva- de uma espécie de insatisfação recíproca.51
É conhecido o gosto dos homens pelos grupos exclusivamente masculinos, onde se comprazem com o espelhamento entre iguais. Não é surpreendente que eles tentem apagar, suprimir este lugar do Outro feminino que ameaça a ordem fálica. “Porém, se ela (a mulher) ocupa esse lugar Outro, efetivamente a questão se coloca; ela não é mais humana, porque temos a enganosa tendência a querer não fazer depender da humanidade senão o que depende da castração, ou seja, do traço fálico, do traço unário”52. Datam de longa data as tentativas feitas pelos homens para transformar as mulheres em seres todos-fálicos, espécie de companheiros semelhantes a eles.
A novidade, porém, é ver surgir essa tentativa de eliminar a feminilidade vinda do lado de quem supostamente defende as mulheres. Primeiro, dizendo que elas não existem (coisa que Lacan nunca disse, note-se), que são um mero semblante. A seguir, eliminando aqueles que seriam os semblantes existentes para representá-las. A representação mais comum que uma mulher encontra hoje é aquela que pretende se contrapor às imagens tradicionais da “pura e recatada”, da “rainha-do-lar”, representando-a com os traços do poder - “empoderada”, se diz, maltratando o vernáculo, que poderia fornecer termos melhores.
Ocorre que, por mais que a presença das mulheres em posições de poder deva ser sempre comemorada - e devamos lutar pelo aumento dessa presença -, tais posições ainda não lhes conferem nenhum traço novo além do já existente falo enquanto significante do poder. Ora, isso não muda em nada o falocentrismo, que, lembremos, significa o falo como centro, não o homem como centro. Só que agora um falocentrismo mais duro - com perdão da expressão - por ser desvinculado do órgão e, por isso, não precisar temer a castração imaginária ou real (a simbólica, pode-se mandá-la para o espaço).
Conseguirão cumprir seu intento e suprimir de uma vez por todas a feminilidade?
Pois quem quer a feminilidade hoje, eu lhes pergunto? Parceira, vá lá, parceiro é melhor; colocatária, dá pra organizar uma festa; coworker, ela é melhor e concorrente. Em suma, a apologia da feminilidade teve o seu tempo, aquele dos adolescentes com espinhas e coração cheio de amor. [...] É verdade que a mulher é uma espécie em via de desaparecimento e que serão necessários os poetas para cantar a sua lembrança.53
1 FREUD, Sigmund. Organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade [1923]. In: _____. Obras incompletas. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. v.7: Amor, sexualidade, feminilidade. p. 237-245. p. 239.
2 FREUD, Sigmund. O declínio do complexo de Édipo [19224]. In:_____. Obras incompletas, v. 7..., op. cit. p. 247-257. p. 254.
3 FREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina [1931]. In: _____. Obras incompletas, v. 7..., op. cit. p. 285-311. p. 290.
4 SAFOUAN, Moustapha. Um debate histórico. In:_____. A sexualidade feminina na doutrina freudiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 11-24. p. 17.
5 FRIGNET, Henry. O transexualismo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002. p. 111.
6 Comentei esse artigo e a releitura freudiana do conceito de falo no meu livro Real, Simbólico e Imaginário no ensino de Lacan: uma introdução. Maringá: Ato Analítico, 2019 (N. do A.).
7 MELMAN, Charles. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2002. p. 21.
8 SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 28.
9 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda [1972-1973]. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 87.
10 Id., ibid., p. 45.
11 SOLER, Colette. Lecture commentée du Séminaire Encore. Paris: Hôpital Sainte-Anne, oct.1999/juin 2000. p. 113. Tradução minha para o trecho citado.
12 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20, mais, ainda, op. cit., p. 78-79.
13 Id., ibid., p. 79.
14 MELMAN, Charles. Aimons-nous encore des femmes? [Conferência], 22/3/2007. Disponível em: Acesso em: 15 nov. 2013. Tradução minha para o trecho citado.
15 SOLER, Colette. Possibilidade de uma ética não individualista da psicanálise. Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 29, p. 23-29, nov. 2014. p. 26.
16 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20, mais, ainda, op. cit., p.78.
17 SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres, op. cit., p. 226.
18 Id., ibid., p. 225.
19 MELMAN, Charles. Uma calça para dois: o ideal da paridade no mundo industrial. 14/5/2008 Tradução Sérgio Rezende. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2017.
20 MELMAN, Charles. Observações sobre a evolução recente das relações com a sexualidade. 05/12/2014. Tradução Letícia Patriota Fonseca. Disponível em: < http://www.freud-lacan.com/getpagedocument/9807 >. Acesso em: 27 nov. 2017.
21 VANDERMERSCH, Bernard. Corte. In: CHEMAMA, Roland; VANDERMERSCH, Bernard (Orgs.). Dicionário de Psicanálise. São Leopoldo, Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2007. p. 72-76. p. 76.
22 PRECIADO, B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0BxrbJ0xD5uBkdGRiMXdGcHR3eEE/view?pli=1 >. Acesso em 23 set. 2019.
23 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 8 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 242.
24 SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 200.
25 MELMAN, Charles. Observações sobre a evolução recente das relações com a sexualidade, op. cit.
26 BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. p. 37.
27 BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas..., op. cit., p. 39.
28 BUTLER, Judith. Problemas de gênero..., op. cit., p. 243.
29 BUTLER, Judith. Problemas de gênero..., op. cit., p. 27.
30 A própria noção de proferimento performativo, na qual ela se inspira e que foi cunhada por Austin, diz respeito a uma relação entre falantes e não considera o sujeito do inconsciente. (N. do A.)
31 BUTLER, Judith. Problemas de gênero..., op. cit., p. 105.
32 BUTLER, Judith. Bodies that matter. Apud SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 121-122.
33 PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 84.
34 O conceito de referente [Bedeutung], introduzido por Gotleb Frege, é rejeitado pelos linguistas por se referir a uma realidade extralinguística: trata-se do objeto da realidade ao qual o signo se refere. (N. do A.)
35 SOLER, Colette. O em-corpo do sujeito: Seminário 2001-2002. Salvador: Ágalma, 2019. p. 181-182.
36 BUTLER, Judith. Problemas de gênero, op. cit., p. 235.
37 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: mais, ainda... op. cit., p. 29.
38 SOLER, Colette. Adventos do real: da angústia ao sintoma. São Paulo: Aller, 2018. p. 223.
40 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 19: ...ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. p. 149.
41 LACAN, Jacques. A significação do falo [1958]. In:_____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 692-703. p. 694.
42 BUTLER, Judith. Problemas de gênero, op. cit., p. 90.
43 As tentativas de construir novas formas de identidade são às vezes cômicas, outras vezes trágicas. Camille Pagila, em uma ótima entrevista ? apesar do título de redação sensacionalista (PAGLIA, Camil