Infância: tempo de brincar de vir-a-ser

Escrito por: Marta Dalla Torre e Valéria Codato em 16/10/2020

“Já o menino sabe, que tudo o que tem forma tem nome e o que nome tem, conforta”

(Horácio Costa, “O menino e o travesseiro”)

A psicanálise não faz referências às fases do desenvolvimento humano como um processo natural de crescimento e amadurecimento bio-psico-social, mas aos tempos da constituição do sujeito, que resultam do encontro entre a natureza, a cultura e a sociedade. Assim, concebe a infância como o primeiro tempo fundante dopsiquismo.

 

Para que surja um sujeito psíquico, se faz necessário o encontro entre a concretude de um corpo orgânico (anatômico, dotado de disposições genéticas e reflexos inerentes à natureza da espécie) com o campo simbólico, da cultura, da linguagem. Encontro este que só é possível a partir da relação do pequeno “infant” com o Outro primordial, encarnado por aqueles que desempenham a função parental, que com suas palavras, gestos, olhares e toques, “humanizam”, dão sentido e significações às manifestações do corpo do bebê.

Sabemos que Freud não prestava atendimentos às crianças, e suas descobertas sobre a infância vieram, sobretudo, baseadas na escuta do discurso inconsciente dos adultos. Em suma, o que a teoria freudiana nos ensina é que o que faz a criança tornar-se alguém é que ela deseja, e para que ela deseje, deve ter sido desejada por um outro que a introduziu no campo do narcisismo e da sexualidade, descrito por Freud como pulsional.

 

Em suas observações de seu neto de 18 meses, Freud (1920) descreve o “Fort-da” como um jogo que mostra a origem do nascimento do sujeito psíquico, por meio do processo de simbolização. O jogo consistia no ato da criança lançar longe um carretel preso a um barbante, e, ao mesmo tempo, enunciar fonemas que apontam o processo de separação: “fort” – longe. Num segundo movimento, a criança trazia de volta para si o carretel, com o enunciado “da”- perto. Repetia incansavelmente esse jogo mediante a saída da mãe de cena, buscando na brincadeira controlar sua ausência e presença, por meio da representação. Cena reveladora do que Lacan posteriormente descreveu como a constituição do eu no escrito “O estádio do espelho e sua função como formador do eu” (1949), ao “se fazer” aparecer e desaparecer diante do espelho (mãe). Em outras palavras, o jogo revela a perda da relação direta com a coisa e a entrada da marca significante no psiquismo pelo acesso à linguagem.

 

Também em Freud encontramos no texto “Escritores criativos e devaneios” (1908) que o brincar é a ocupação favorita e mais intensa da criança, onde ela cria um mundo próprio, buscando ligar seus objetos e situações imaginadas às coisas do mundo externo, num processo de internalização e formação de seu mundo representacional.

 

Temos, então, pontos cruciais em torno do brincar na infância: a repetição, a linguagem, a imagem especular, a simbolização. O brincar, portanto, é fundamental na constituição do psiquismo, ao criar recursos para o seu desenvolvimento “neuro-psiquico-cognitivo-motor”, pois é o que dá ferramentas para a aquisição da linguagem, da fala e da marcha, do aprendizado da leitura e da escrita, do raciocínio matemático, dos movimentos do corpo, do controle esfincteriano, das habilidades manuais, da socialização, das competências e habilidades emocionais para viver em sociedade.

 

O brincar, para Freud (1908), é determinado por um único desejo – de ser grande e adulto. Ou, como afirma Jerusalinsky (2011, p.87): “a criança é aquela que brinca de vir a ser”. Portanto, brincar é coisa séria!

 

Jerusalinsky (1995) descreve uma série de jogos ditos “estruturantes” ou constituintes de um sujeito: 1 – Fort-Da – presente nas brincadeiras que colocam em cena o presente-ausente, jogos de ocultamento, de esconde-esconde, e até mesmo a formação da mentira e do segredo em crianças maiores; 2- Jogos transicionais – brinquedos tomados como objetos transicionais, de acordo com Winnicott, são aqueles que aludem à substituição do objeto de desejo (mãe), portanto lançam a criança numa ordem mais além do gozo materno, como bonecos e bichos de pelúcia; 3- jogos de borda – lançar objetos do berço, empurrar objetos para que caiam, espiar pelas frestas, remexer em buracos, andar em parapeitos, jogar de cair numa piscina ou em cima de colchões, etc. Tais jogos ditos estruturantes ou constituintes não são destinados a resolver sintomas, embora às vezes sejam recursos para tal, mas em sua essência estão orientados para a constituição de um sujeito psíquico.

 

E o que podemos pensar sobre esse processo de simbolização no mundo atual, onde observamos uma “economia” da imaginarização do brincar, uma supressão dos tempos da infância e a consequente “adultização” dos pequenos, que são “poupados” do tempo necessário para os jogos constituintes?

 

A infância hoje se encontra marcada pelos sintomas da sociedade contemporânea como a velocidade, a multiplicidade, a fragmentação, o consumismo exacerbado, a sexualização banalizada, a hiperestimulação, o culto à imagem, que também alteram as brincadeiras e o processo metafórico que lhe é inerente. Os brinquedos, por sua vez, que deveriam ser verdadeiros instrumentos para tal processo se realizar, reproduzem o discurso social dominante “light and clean”, ou seja, objetos ofertados pela indústria que cumprem seu papel de mercado – consumíveis em larga escala, altamente descartáveis, límpidos e vazios de significação.

 

Entretê-los com jogos eletrônicos ou virtuais, muitas vezes tomados como “pedagógicos” por pais e educadores, carecem de valor estruturante, principalmente para um psiquismo ainda primitivo que ainda transita entre o real, o imaginário e o virtual.

 

Além do mais, o cuidado exagerado com a segurança das crianças para que “nada de mal lhes aconteça”, ou a oferta exagerada de objetos para que “nada lhes falte”, transforma o brincar em fonte de angústia para os pais. Como afirma Meira (2003: 47): “Literalmente, o olhar do Outro invade a cena do brincar da criança de tal forma que a ela resta abandonar o jogo e buscar algo em torno do qual seus pais desviem o olhar, para ali instalar seu jogo metafórico”.

 

O cotidiano da clínica com crianças nos traz exemplos variados sobre os efeitos desse modo de viver na atualidade sobre o corpo infantil. Por exemplo, encontramos crianças que não conseguem um controle esfincteriano, que recusam o alimento, ou ainda que não dormem à noite, apesar de não apresentarem qualquer motivo fisiológico para tal. Há ainda sintomas nomeados como a hiperatividade, a desatenção, dificuldades de aprendizagem que revelam como as situações familiares, fatos do passado, perturbações nas funções materna e paterna ou na relação do casal parental intervêm em seu aparecimento. Entendê-los para além do ponto de vista neurobioquímico que impera na atualidade, é reafirmar o homem como ser simbólico.

 

Se, por um lado, a brincadeira faz parte dos tempos da constituição do sujeito, ela também é reveladora do que não vai bem nesse processo. Isto significa que a tendência de corrigir os sintomas da infância por meio da medicalização ou até mesmo da ocupação de seu tempo por atividades sem significação para ela, vai na contra mão do que a psicanálise propõe.

 

Devemos nos ocupar, portanto, daquilo que ainda não está constituído, do inacabado, para que em seu percurso subjetivo a criança possa, por meio da brincadeira, expressar suas angústias e conflitos e resolver suas questões. Distintamente do que apregoava Anna Freud, uma análise não deve se confundir com uma atividade educativa, mas sim proporcionar à criança a possibilidade de viver plenamente sua infância como um tempo e espaço necessário para que a subjetividade se estruture.

 

A psicanálise com crianças se propõe, então, a escutá-las em suas brincadeiras e ajudá-las no processo de metaforização, a construírem redes simbólicas, a entrarem no jogo para que depois possam sair dele, rumo ao mundo adulto, tal qual afirmava Freud (1908, p.150): “Como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância; equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, pode livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor”.

 

REFERÊNCIAS

BERNARDINO,L. (org) O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em constituição. Escuta, SP, 2006.

FREUD, S. (1908) Escritores criativos e devaneios. Obras Completas. Vol IX. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

FREUD, S.(1920) Além do Princípio do Prazer. Obras Completas. Vol XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

JESUSALINSKY, A. A educação é terapêutica? Acerca dos três jogos constituintes do sujeito. Em: Amarelinhas. Revista da Biblioteca Freudiana de Curitiba,n.2, set 1995.

JERUSALINSKY, A. Violência e agressividade na infância. Em: Autoridade e Violência. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (org). Porto Alegre, 2011.

LACAN, J (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. Jorge Zahar Editora, RJ, 1998.

MEIRA, A. M. (org). Novos Sintomas. Salvador, Agalma, 2003. Coleção Psicanálise da Criança.