“Se o demenciado perde a razão, é a razão de viver que ele perde.”
As demências têm sido uma preocupação por parte da ciência há muito tempo e referem-se a várias doenças de origem e manifestações diferentes, mas que apresentam prognósticos semelhantes, cujas progressivas e irreversíveis perdas cognitivas interferem diretamente nas atividades da vida cotidiana. Inúmeras pesquisas vêm sendo realizadas para compreendê-las e encontrar formas de amenizar sua evolução e sintomatologia, já que se apresentam como importantes prejuízos à rotina de muitas pessoas durante o envelhecimento. Estimativas concluem que 50% das pessoas com mais de 90 anos desenvolverão algum tipo de doença demencial com diferentes graus de dependência, como o Mal de Alzheimer ,que afeta cada dia mais pessoas.
Contudo, a demência não deve ser apenas entendida como parte natural do processo de envelhecer, mas sim, como um quadro patológico que, para além da deterioração neuronal que afeta os processos de memória como uma função neurológica, pode ser compreendida como uma perda subjetiva cujos efeitos recaem sobre a memória como função historizadora, conforme propõe a psicanálise.
A presença do sentimento de finitude que caracteriza o humano, posto ser o único que sabe que vai morrer, produz uma noção de temporalidade que nos permite viver o presente, lembrar e avaliar o passado, e ainda projetar o momento futuro. Temporalidade que sustenta a historicidade humana e preserva a identidade de cada um e de todos nós, dando sentido às nossas vidas.
Todavia, embora tenhamos consciência de nossa própria morte, “no inconsciente estamos convencidos de nossa imortalidade”, nos dizia Freud, nos texto “Reflexões para os tempos de Guerra e Morte” (1915), e nos defendemos dela por meio de mecanismos psíquicos diversos. A proximidade com a morte, por outro lado, confronta-nos com a vivência da finitude, a qual se revela sob diferentes qualidades e intensidades emocionais, dependendo de cada sujeito e de suas diversas experiências de elaboração de perdas ao longo de sua vida.
No processo de envelhecimento, tal vivência marca uma experiência de luto diante da perda da promessa do futuro, processo de elaboração necessário para que outros investimentos sejam possíveis e a libido continue a produzir vínculos. Quando esta elaboração não se dá, podemos encontrar sintomas variados e manifestações de doenças, como depressões e até mesmo quadros demenciais.
Assim, podemos encontrar pessoas que entraram num estado demencial após terem sofrido perdas significativas (morte de entes queridos, prejuízos financeiros irrecuperáveis, rompimento de vínculos, etc), mas há também aqueles para quem o tempo e a vida que findam são suficientes para experimentarem uma dificuldade de elaboração de um luto antecipado.
Freud (1917), no texto “Luto e Melancolia”, diferenciava os processos de luto e melancolia afirmando que enquanto o primeiro se manifestava como um processo psíquico normal diante de uma perda significativa (real ou imaginária), a segunda era considerada como um processo patológico mediante a vivência da perda, que não permitiria ao sujeito a elaboração da mesma. Em ambos, encontramos o sofrimento, a perda de interesse pelo mundo exterior, a inibição da produtividade e a incapacidade de amar.
Sabemos que durante o trabalho de luto o mundo externo empobrece, e se faz necessário um tempo de elaboração para transformar a dor em lembranças, para desligar-se do objeto perdido e fazer novos investimentos. Como elaborar lutos quando a finitude se presentifica e não há mais tempo para aguardar a satisfação futura?
A presença do tema da morte é uma constante na vida dos idosos. Em nenhuma outra fase da vida o sujeito se vê tão próximo da ruptura definitiva dos vínculos e corre o risco maior de ser atingido pela pulsão de morte com sua força de destrutividade e desligamento.
Quando o trabalho psíquico de luto é possível, encontram saídas variadas como a religiosidade, projetos de vida a curto prazo, serenidade em transmitir seus valores para outras gerações. Contudo, para aqueles cuja elaboração do luto se vê impedida, as formas regressivas são as alternativas encontradas: recordações do passado são vívidas e esquecem-se do presente, deixam de reconhecer pessoas de sua convivência diária, esquecem palavras que nomeiam objetos, uma desorientação espaço-temporal se instala, perdem o registro imaginário-simbólico do corpo (defecam, urinam, se despem, se masturbam, mexem com as fezes), e perdem a capacidade para resolver os mínimos problemas da vida diária.
A vivência do vazio se instala, a perda é apagada de um modo defensivo pelo esquecimento e o sujeito fica em “estado de suspensão”, numa impossibilidade de agir e de desejar, de manter vínculos sociais, de colocar as excitações pulsionais no circuito simbólico, numa espécie de “suicídio psíquico”.
Temos ainda que levar em conta que nos tempos atuais a vida conduz ao instantâneo, ao “ready made”, que conduz à escassez do tempo, da memória e, portanto da história. A vivência do desamparo, solidão e isolamento caracterizam um modo de viver que favorecem o desligamento, o desinvestimento em vínculos duradouros e significativos. O sujeito acaba por perder o sentido histórico de sua existência, o sentido de pertença próprio das relações sociais.
Portanto, temos que buscar resgatar a historicidade, a memória, as representações simbólicas da existência humana, pois a vida é o tempo que acontece entre o nascer e o morrer e, nesse intervalo, o sujeito deverá encontrar os limites de seu desejo e as possibilidades de encontro com seus objetos. E isto só é possível quando reconhecemos e admitimos nossas fragilidades e insuficiências.
Para além do que a ciência busca comprovar com suas teses neurofisiológicas, é preciso sustentar nossa aposta no sujeito do inconsciente, na amarração Real-Simbólico-Imaginário que sustenta nossa ex-sistência!