Freud (1920) declara que a teoria das pulsões é “a parte mais importante da teoria psicanalítica embora, ao mesmo tempo, a menos completa”. Afirmativa que nos deixou com a bússola na mão e novos caminhos a percorrer. Pontos enigmáticos de seu texto levaram a interpretações equivocadas e discordâncias entre os psicanalistas, bem como a novas respostas e teorizações complexas que se seguiram à sua morte.
A obra “Além do Princípio do Prazer”, que completa hoje 100 anos, é tomada como um giro teórico de Freud em 1920. Ao se deparar com a compulsão à repetição de situações que não traziam qualquer forma de prazer, mas sofrimento, concluiu que há em nossa vida mental algo mais elementar, mais primitivo, mais além (ou aquém) do Princípio do Prazer, que nos governa.
O recurso à biologia que marca sua escrita no texto “Além do Princípio do Prazer” (1920) se traduz na concepção de uma pulsão que tende ao inanimado, ao inorgânico, portanto, à morte. Freud a refere em certas manifestações clínicas, como por exemplo, na repetição dos sonhos traumáticos ou ainda nas neuroses de destino, nas reações terapêuticas negativas, como também nos sintomas ou na clínica do masoquismo, que indicariam a presença de uma “satisfação paradoxal” que dominaria o funcionamento mental.
Porém, a aceitação de uma destrutividade autônoma, não derivada da sexualidade ou não ligada a ela, era de difícil aceitação por parte de Freud, pois tratava-se de reconhecer a maldade irredutível que habita o ser humano. Somente 10 anos depois, ao publicar “O Mal-Estar na Cultura” (1930) Freud fornece à Pulsão de Morte uma dimensão autônoma e destrutiva, por excelência. Contrariamente ao caráter ruidoso das pulsões sexuais, afirmava que a pulsão de morte era silenciosa e articulada ao conceito de repetição.
Um obstáculo à cultura, dado que esta encontra-se a serviço de Eros, buscando reunir os indivíduos, famílias, nações, em torno de uma grande unidade denominada humanidade. Em oposição, a pulsão de morte com sua força “demoníaca” tem por alvo a disjunção, a recusa da permanência.
É neste ponto que Lacan apresenta um novo modo de concebê-la: enquanto a pulsão sexual (de vida) é conservadora, tende à unificação e indiferenciação, pois além de construir uniões tende a mantê-las, a pulsão de morte é renovadora, produtora de diferenças, e, ao colocar em causa tudo o que existe, ela é potência criadora!
Lacan se distancia da ideia freudiana sobre a pulsão de morte como retorno ao inanimado ao apontar para uma “vontade de destruição” que não deve ser confundida com a agressividade, mas sim com vontade de recomeçar com novos custos: “Vontade de Outra coisa”, como afirma no Seminário 7 (LACAN,1959/1960).
Ao abordar a repetição como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan (1964) no Seminário XI a apresenta como indissociável da pulsão de morte. Se, por um lado, há a repetição da rede de significantes, daquilo que se encontra representado e que é veiculado pela palavra e pelas formações do inconsciente (atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas), há também a repetição daquilo que não se encontra simbolizado e insiste sob a forma de compulsão à repetição. Parte irrepresentável que persiste e insiste, sob a forma de repetição diferencial, como denominou Lacan, que aponta para a dimensão do Real.
Ao longo de seu ensino, Lacan desata a agressividade da pulsão de morte, passando a posicionar a agressividade intimamente ligada ao imaginário e ao narcisismo, e a pulsão entre o registro simbólico e a dimensão do real.
A oposição freudiana entre pulsão de vida e de morte se torna então superada, pois ao recorrer à dimensão do real para dar conta da “satisfação paradoxal” explicitada por Freud, Lacan irá enfatizar o campo do gozo.
Lacan o formula explicitamente: “Explico assim a afinidade essencial de toda pulsão com a zona da morte, e concilio as duas faces da pulsão — que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte” (LACAN, 1964/1998, p.188). E acrescenta: “a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (LACAN, 1964/1998, p.195).A pulsão sexual que era situada, até então, do lado da vida, inclui também a dimensão da morte. Desde então, as pulsões de vida e as pulsões de morte aparecem como dois aspectos de uma só e mesma pulsão.
Toda pulsão é uma ultrapassagem repetitiva do princípio do prazer para tentar atingir — em vão — um gozo perdido para sempre. Dito de outro modo, em toda pulsão existe essa possibilidade de uma transformação do prazer em gozo, a partir do que Lacan chama uma ultrapassagem do princípio do prazer.
Podemos afirmar que Lacan nunca abandonou a pulsão de morte freudiana. Ao contrário, fez dela a pedra de sustentação do circuito pulsional. E quando fez do gozo o problema maior com o qual cada um, seja neurótico ou psicótico, tem que se confrontar, pode-se dizer que inscreveu a questão da pulsão de morte no coração de sua teoria e de sua concepção do tratamento psicanalítico.
Ponto indiscutivelmente importante que sustenta a ética da psicanálise mais do que uma práxis para além do bem e do mal, uma experiência que possibilita a “travessia do pior que nos aspira, mais do que nos inspira” – o campo do gozo- e o despertar para o desejo.
Para saber mais:
Garcia-Roza, L.A. Acaso e repetição em psicanálise. Rj, Zahar, 1986
Garcia-Roza, L.A. O Mal Radical em Freud. RJ, Zahar, 1990
Fingermann,D. e Dias, M.M. SP, Iluminuras, 2005
Lacan, J. Seminário XI (1963-64). RJ, Zahar, 1998
Lacan, J. Seminário VII (1959-60). RJ, Zahar
Freud, S. (1920) Além do Princípio do Prazer. RJ, Imago, 1981
Freud, S. (1930) O Mal-Estar na Civilização. RJ, Zahar, 1981