“Do bom dia ao bonheur: qual ética sustenta a nossa clínica?”
Valéria Codato
II Jornada da Associação de Psicanálise de Maringá
Ato Analítico
06 de novembro de 2021
‘‘Bom dia”! Uma expressão corriqueira e que nos acompanha diariamente, seja no convívio social, ou na recepção de mensagens que povoam nossos celulares, computadores e similares. Nas telas chegam mensagens de todas as cores, para todos os gostos e desgostos. Quem entre nós nunca se incomodou com esse enxame de mensagens que se tornam verdadeiros lixos eletrônicos? O que dizem essas mensagens? Que o outro verdadeiramente me deseja o bem? Que ao enunciar essa frase, ele espera pelo retorno especular da mensagem? Ou simplesmente quer se ver como um sujeito educado e gentil em sua imagem narcísica?
Nunca sabemos o que o outro quis dizer! Entre o dito e o dizer há uma distância que podemos atravessar ao escutarmos as formações do inconsciente, mas entre o que um disse e o que outro escutou, ahhh... aí há sempre um abismo! É desse modo que gostaria de introduzir hoje o que considero de fundamental na experiência da psicanálise e que deve nortear nossa ética.
Me surpreendi dias atrás ao ver numa caixinha de perguntas e respostas num perfil do Instagram a seguinte questão: “Você diz Bom dia aos seus analisantes?” Fiquei pasma! Ainda criança, aprendi com os mais velhos que dizer “Bom dia” é sinal de gentileza e boa educação. Nunca li qualquer recomendação aos que exercem a psicanálise de que devam ser maleducados. Fiquei perplexa ao imaginar que no rol das recomendações sobre a maneira de se vestir e de decorar seu consultório, também deva constar que cumprimentar os analisandos fere à regra da abstinência do analista!
É bem verdade que a neutralidade e a abstinência se revelaram como exigências importantes à nossa prática desde Freud. Lamentavelmente, muitos entenderam de modo equivocado que ao se utilizarem de vestimentas de cor neutra, manterem o consultório asséptico de objetos pessoais e usarem da formalidade na comunicação com o analisante garantiriam que o campo da transferência e da contratransferência estivessem despidos de qualquer interferência. A imagem do psicanalista se disseminou como uma pessoa séria, fria e distante, que pouco se comunica com seu analisante, não expressa reações afetivas, não é acolhedor, tampouco demonstra empatia.
A transferência, sabemos, se dá antes mesmo da primeira entrevista com o analista, despertada por fatores completamente aleatórios: o olhar, a voz, o gesto, a cor da pele, a escrita, o nome, o endereço, a indicação por parte de alguém...”Sabe-se-lá-mais-o-quê” poderia acrescentar nessa lista de elementos que podem, inclusive, dizer respeito àquilo de tão pessoal que alguns profissionais buscam omitir.
Mas, sejamos claros, não é disso que se trata! O que é preciso entender com Freud e Lacan é que o psicanalista, para exercer sua função, há que sustentar o lugar de “des-ser”, o lugar do morto, ou seja, não entra na jogada com sua pessoa, seus sentimentos, opiniões e valores. Cito Lacan: “Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que, ao ressuscitá-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz.” (Escritos, p. 595)
Neste mesmo texto (A Direção do tratamento e os princípios de seu poder, 1958), Lacan disse claramente que, ao entrar nessa jogada, um analista paga com suas palavras – interpretação – e também com sua pessoa, já que esta deverá ficar do lado de fora da cena analítica, servindo apenas como suporte à transferência.
Na década de 70, Lacan concede uma entrevista publicada como “Telévision” (1973) onde busca diferenciar a psicanálise de outras práticas terapêuticas: “ O bom senso representa a sugestão, a comédia, o riso.[...] É aí que a psicoterapia, seja ela qual for, estanca, não porque não exerça algum bem, mas por ser um bem que leva ao pior.” (Escritos, p. 513). Apesar do mal-entendido que esse enunciado pode causar, podemos concluir que uma psicoterapia pode levar ao pior na medida em que busca atender às demandas do sujeito, dando-lhe respostas e confirmando a crença na consistência do saber do Outro, perpetuando, desse modo, a estrutura de alienação que o fantasma neurótico sustenta, ao invés de atravessá-la.
Uma psicoterapia pode conduzir ao pior quando não se leva em conta que as respostas estão no próprio sujeito onde o sofrimento se instalou, ali onde há um “saber-insabido” que ele próprio carrega e desconhece. Um psicanalista, portanto, não deve obturar o inconsciente com interpretações prontas, fornecendo ao sujeito um sentido que responda às suas questões. A experiência analítica consiste em subverter a demanda e buscar a ordem do desejo eu a sustenta: “Dê-me sua demanda, que eu te devolverei seu desejo”, parece uma proposta empolgante, como destaca Dominique Fingermann (2005, p. 42), mas que encontrará muitas dificuldades e resistências no caminho.
Ao ofertar sua presença, sua escuta e manter a demanda em suspenso, o analista sustentará o lugar da fala para que reapareçam os significantes onde as demandas e frustrações estão retidas, até o ponto mais originário da história do sujeito. Um psicanalista acolhe os significantes e tudo o que pode estar aí coagulado. “Colocamos, assim, o inconsciente em exercício”, como salienta Colette Soller (2006), ali onde a repetição dará lugar ao novo! Regra de ouro da psicanálise!
O discurso do analista segue no sentido da contramão ou na contramão do sentido, ao provocar o “non-sense”, revelando-se assim o real que está para além do dito e que dá origem aos sintomas, angústias e inibições. E, para isso, é preciso exercer de modo radical o “desejo de analista”, termo cunhado por Lacan que aponta para o lugar ético que todo psicanalista deve ocupar – lugar vazio, esburacado, habitado por um “não-saber”. Somente passível de ser ocupado por aquele que, tendo percorrido um caminho suficiente de análise, suporta o encontro com o Real.
O dispositivo “desejo do analista” não diz respeito aos seus desejos pessoais fundados na estrutura de seu fantasma neurótico. Não se refere, tampouco, ao desejo narcísico de ser reconhecido como analista. O desejo do analista é desejo de analisar até as últimas consequências e transpor o “horror de seu ato” como afirma Lacan, que levaria à resistência do analista pelo desconforto do qual seu próprio ato é causa: não responder à demanda que ele próprio fomenta.
Estejamos advertidos, porém, que diante da posição de “Sujeito Suposto Saber” endereçada ao analista na transferência, responder do lugar de “não-saber” não lhe retira a responsabilidade de saber como conduzir o tratamento. Na Proposição de 9 de outubro de 1967, quando Lacan propõe uma nova escola de Formação de psicanalistas, ele afirma: “É claro que do saber suposto ele nada sabe [...] Isto não autoriza o psicanalista, de modo algum, a se dar por satisfeito com saber que nada sabe, pois o que se trata é do que ele tem que saber”. (Escritos, p.254)
Sustentar o lugar do “não saber” em sua função analista resulta da travessia da paixão da ignorância que todo neurótico carrega; horror ao saber com o qual terá se confrontado no percurso de sua própria experiência de análise.
Um analista deve estar bem posicionado quanto ao seu saber, pois como afirma Lacan “O psicanalista certamente dirige o tratamento [...] não deve de modo algum dirigir o paciente.” (A Direção do tratamento e os princípios de seu poder,1958, Escritos p.592). É nesta báscula saber/não saber que nossa ética deve se sustentar. Vejam aqui a importância dos estudos teóricos, da análise pessoal e da supervisão clinica como alicerces de nossa práxis!
Escuto insistentemente que um analista se forma no divã, ou seja, em sua própria análise. Certamente tal afirmação tem fundamentos desde as palavras de Freud quando refletia sobre as condições essenciais para a formação de um analista. Contudo, uma análise não produz um analista, mas um psicanalisado. Para que ele possa sustentar a função de analista deverá também saber como manejar a transferência e sustentar suas intervenções numa lógica que, por sua vez, tem suas bases teóricas. Caberá ao analista escutar os sinais linguageiros que o discurso do analisante enuncia, para que assim, a condução desse percurso não se dê às cegas, sem direção.
Lembremos que a ética da psicanálise rompe com a tradição filosófica onde o Bem supremo guiava o homem. Encontramos em Aristóteles (Grécia Antiga, ~300 A.C) o pressuposto de que há no mundo vivo, na Natureza e, portanto, na psique humana, uma inclinação para o Bem Supremo e, consequentemente, para a felicidade. Há em algum lugar a inscrição de um ponto finalizador onde todos somos esperados, ali onde se encontra o objeto buscado, no qual o bem e a felicidade se conjugam soberanamente. No pensamento aristotélico, a ordem particular e a ordem universal – micro e macrocosmo - convergem no ethos do Bem supremo.
Pensamento do qual Freud diverge clara e radicalmente ao afirmar no MalEstar na Civilização (1930) que não há receitas para a felicidade, e que cabe a cada um buscá-la ao seu modo. Lembremos de suas palavras: “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz”. Ou ainda: “não fez parte do projeto da criação que o homem seja feliz.” Mas, afinal, como que esses enunciados freudianos (tão frequentemente presentes nas redes sociais) podem sustentar a ética de nossa prática?
Nos avanços feitos por Lacan, encontramos no Seminário 7 dedicado à Ética da Psicanálise: “se há algo que se chama seu bem e sua felicidade, não há nada para isso esperado nem do microcosmo, isto é, dele mesmo, nem do macrocosmo.” (Lacan, Sem.7, p.46)
Afinal, nem mesmo o sujeito sabe o que é seu bem. E paradoxalmente, seu bem também pode levá-lo ao pior. Esse é o lugar da interrogação freudiana que ganhou os avanços de Lacan sobre o que a análise pode promover na vida de um sujeito. Pois, se não podemos prometer a dita felicidade, o que temos a oferecer com nossa escuta?
A felicidade almejada como plena satisfação será sempre limitada, nos diz Freud, e caminhos distintos são eleitos por cada sujeito nessa tentativa vã de encontrá-la completamente, ou ainda, de evitar o desprazer e a dor que implica o viver. Paradoxalmente, para além do Princípio do Prazer e do Princípio da Realidade que regem o funcionamento do aparelho psíquico, há algo mais elementar, mais primitivo que nos governa, denominado por Freud como Mais Além do Princípio do Prazer. Eis a pulsão de morte e seu reinado!
Freud não deixa de apontar que a pulsão de morte que nos constitui está sempre presente nas relações com o outro. Há uma potência agressiva que insiste, que não é totalmente encoberta por Eros e que perturba o convívio social. O mandamento divino “Amar ao próximo como a ti mesmo” só faz revelar que há desejos inconscientes que implicam numa maldade que habita todo e qualquer sujeito. Em suas palavras:
“O homem, com efeito, é tentado a satisfazer-se no próximo sua agressividade, a explorar seu trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apropriar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, tortura-lo, mata-lo” (Freud, MEC, 1930)
Lembremos que neste mesmo texto Freud evidencia três fontes do sofrimento humano: o próprio corpo, destinado às doenças, decadência ou morte; as forças implacáveis da natureza que não podemos evitar; a relação com os outros humanos. Sabemos o quanto esse terceiro fator nos atormenta e é o motivo maior de quem busca análise para aliviar suas dores.
Mas, ao considerarmos nossa relação com os outros, nossos semelhantes, teremos que admitir um outro que nos habita e que guarda conosco uma relação de extimidade. Tão familiar, tão íntimo, e ao mesmo tempo tão estranho, estrangeiro, infamiliar. Nomeado por Freud como Unheimlich, o estranho-familiar que traz em seu âmago o mal, um gozo do qual não ouso me aproximar. Pois a agressividade que ele contém retorna contra mim mesmo.
Não bastassem as 3 fontes de sofrimento acima mencionadas, Freud ainda nos revela a presença de uma instância psíquica que julga e critica o próprio Eu, produz o sentimento de culpa e até mesmo a necessidade do castigo. São os imperativos de um supereu cruel que exige a realização de um ideal de perfeição inalcançável, e que traz como consequência um sofrimento neurótico miserável.
Não é o que constatamos no cotidiano da clínica? O sujeito recua e cria interdições ao gozo em nome de “seu bem” ou do “bem do outro”. Ao renunciá-lo, volta à estagnação e ao tédio, que ilusoriamente garantiria uma distância de um gozo que julga maldoso e, por que não dizer, mortífero. No entanto, paradoxalmente, acaba seduzido pela pulsão de morte que o silencia, sob os imperativos de um supereu, que assim resume Philippe Julien (p.65): “Boca voraz! Quanto mais se procura satisfazê-la, mais ela pede! Abismo sem fundo, que a clínica constata cotidianamente, e não apenas na neurose obsessiva.”
A felicidade, em Freud, é uma meta inatingível na vida do homem devido não só aos limites impostos pela cultura (repressão dos impulsos sexuais e agressivos), mas, sobretudo, por àqueles estabelecidos por nossa própria constituição psíquica.
Por isso, a psicanálise não promete a felicidade como um estado pleno a ser atingido, mas a função do analista em sua posição de Sujeito-suposto-Saber deve conduzir cada um a encontrar o seu próprio caminho da felicidade possível, utilizando-se de seus recursos subjetivos para recortar da cena do mundo as possibilidades de realização de seu empreendimento vital. Ou seja, promove torções nos modos de gozo que alteram onde cada sujeito investe sua libido, direciona seu desejo, faz suas apostas e escolhas, e revela modos singulares e inventivos de gozar da vida.
A prática do “bem-dizer” convida a falar. Ali onde o sujeito dirige sua demanda, seu sofrimento à espera por uma significação, o analista o convoca a dizer mais. Pelos trilhos da transferência, o convite à associação livre leva o sujeito à experiência do inconsciente naquele ponto em que o estranho-familiar comparece, produz angústia e o horror ao saber. Pois, a lei do significante inclui também o que ele não captura, o Real que fica à espreita em busca de simbolização, num processo infinito de repetição.
O que esperar da psicanálise?
Um analista não pode dar o que não tem, não pode prometer, não pode garantir, não pode vender ilusões. Reside justo aí a ética da psicanálise, que não se encontra orientada pelo bem como ideal a ser alcançado, num estado em que tudo se harmonizaria. Diferentemente das psicoterapias, a psicanálise está voltada para a divisão do sujeito, para os efeitos do Real sobre o sujeito e para o incurável.
Cabe uma advertência: a psicanálise não é para todos. A confrontação com a dimensão do desejo que nada assegura, não é algo que se possa suportar tão facilmente ou tão impunemente.
Para Freud, a psicanálise não faz mais do que transformar ou reduzir a infelicidade neurótica em uma infelicidade comum. E ele sabia que toda infelicidade neurótica é uma felicidade que não se reconhece como tal.
De acordo com Lacan, uma análise produz o incurável e conduz ao bonheur, a boa hora, a sorte de acolher o encontro inesperado, conforme ele enuncia em Televisão (Outros Escritos, p.525):
“Nisso tudo, onde está o que traz felicidade, feliz acaso (Bom-heur)? Exatamente em toda parte. O sujeito é feliz. Esta é até sua definição, já que ele só pode dever tudo ao acaso, à fortuna, em outras palavras, e que todo acaso lhe é bom para aquilo que o sustenta, ou seja, para que ele se repita.”.
Ao separar a palavra bon-heur, Lacan reúne tanto o sentido de felicidade quanto o de boa sorte ou acaso. Aquilo que ele nomeou como encontro falho em 1964 ao se referir ao movimento da repetição, ele rebatizou como bon-heur.
Não se pode esperar o bon-heur, a boa hora, a sorte feliz, pois ele acontece inesperadamente. É a partir do incurável, da castração, do impossível como tal que o sujeito estará disposto a não ceder em seu desejo e acolher o bom encontro do acaso.
Dizer “Bom dia” ao analisando revela, portanto, que para além de uma atitude cordial e gentil, ao praticarmos a “ética do bem dizer” fazemos uma aposta que o sujeito encontre seu “bon-heur”.
É nessa prática guiada pela ética da psicanálise que os conceitos fundamentais - Inconsciente, pulsão, repetição e transferência – se encontram. Para concluir, é preciso sempre afirmar que os estudos teóricos são imprescindíveis para que o exercício de nossa clinica não seja mera fraude, charlatanismo ou magia!
Bon-heur a todos!