Em nenhum outro momento da história a adolescência provocou tanto fascínio e temor ao mesmo tempo. Se, por um lado, há um jeito “teen” de viver que seduz adultos em torno de um ideal de jamais envelhecerem ou morrerem, numa espécie de ilusão da imortalidade e elisão da castração, por outro lado, os altos índices de violência, de suicídio, de anorexias e bulimias, de abuso de drogas e de transgressões dentre os jovens instigam tanto leigos quanto profissionais, desafiam o meio científico e político, os saberes e os fazeres técnicos, e colocam aos psicanalistas o desafio de não recuarem diante da tarefa de escutar esse modo de dizer, não com as palavras, mas daquilo que busca outras vias de valor significante.
Longe de ser considerada como um processo natural ou fase do desenvolvimento humano, a adolescência, para a psicanálise, é compreendida como um tempo da subjetivação, momento de elaboração psíquica, que inclui sofrimento e angústia. Lembremos que o termo adolescência tem como raiz dolere que significa sofrer uma dor, lamentar, estar triste; “adolescere” evoca tanto o crescer como ir em direção à dor, ao que arde, ao que queima.
Silvia Amigo1 afirma que não há como atravessar esse tempo sem crise, e impedir o “estar ardendo” da investigação do adolescente sobre seu sexo e sobre seu corpo equivale a impedir-lhe de “crescer”.
É no tempo da adolescência que as identificações da primeira infância serão revisitadas. Renunciar ao corpo infantil, aos pais da infância e à criança idealizada que foi para seus pais, introduz o sujeito num momento crítico de travessia, quando uma nova imagem se apresentará exigindo-lhe também o estatuto de uma nova identidade. Abandonar a imagem infantil e, definitivamente, descolar-se do lugar de objeto que supôs representar para o Outro, consiste na elaboração de um luto que o adolescente só poderá realizar a contento caso as ferramentas do simbólico e do imaginário estiverem em bom estado de funcionamento. Momento crucial de reedição da cadeia borromeana (RSI) que, nas
1 Amigo. S. Clínica dos fracassos da fantasia. RJ: Cia Freud, 2007.
palavras de Xavier, revelará “o que separa o destino daqueles que podem adolescer do destino dos que diferentemente, adoecem”.2
Inúmeras manifestações de sintomas, inibições e angústia comparecem nesta busca de uma nova identidade e elaboração de lutos. Se, para qualquer adolescente é difícil simbolizar as mudanças no real do corpo, e um sintoma ou outro se faz necessário para suportar os infortúnios de assumir-se enquanto sujeito desejante e sustentar o fantasma inaugural que o anima, para alguns deles, o florescimento de inibições ou quadros graves de angústia são inevitáveis.
Para a criança, há uma espécie de promessa que sustenta o período de latência, ou seja, ela renuncia à atividade sexual e aceita sua condição esperando alcançar no futuro o gozo prometido (“mais tarde você poderá”, “quando você crescer...”), até que ao chegar no tempo da adolescência, a promessa do Édipo se mostra enganadora, pois descobre que não basta ter o instrumento genital para exercê-lo, pois o encontro com o Outro sexo se faz de maneira muito mais complexa.
Segundo Freud (1905)3, este é o momento do segundo despertar sexual, no qual “a pulsão sexual, que até agora era essencialmente auto-erótica, vai descobrir o objeto sexual....aparece um novo objetivo sexual e todas as pulsões parciais se combinam para atingi-lo, ao passo que as zonas erógenas ficam subordinadas ao primado da zona genital”. A genitalidade passa a ocupar uma posição dominante, garantindo a conclusão do processo de identificação sexual iniciado na fase edípica. Estar do lado homem ou do lado mulher é o que, na melhor das hipóteses, define sua inscrição no campo das neuroses, momento conclusivo que só será possível na medida em que o narcisismo, como condição estruturante, ofereça os instrumentos e as condições para os investimentos objetais necessários.
Para Rassial (1999)4 , a adolescência só se faz possível depois do “estadio do espelho”, pois sob o olhar do outro, o sujeito terá que se reapropiar de sua imagem, agora transformada. É sob o olhar do outro, ao mesmo tempo semelhante e pertencente ao
2 Xavier, E. F. A irrupção da psicose na adolescência. In: Adolescência: entre o passado e o futuro. APPOA, 1997 3 Freud, S. Três Ensaios sobre a Sexualidade, 1905 4 Rassial, J.J. O adolescente e o Psicanalista, Cia de Freud,1999
Outro sexo, que o corpo do adolescente muda de estatuto e de valor, pois é o outro quem poderá reconhecê-lo como desejável e desejante, ao preço do sintoma sexual.
Sobre essa questão, Silvia Amigo5 afirma: “É na cobertura imaginária do novo real e na formação do campo do real do gozo como furado que costumam encastelar-se endiabradas problemas clínicos na adolescência”. São dificuldades encontradas na busca de uma nova vestimenta imaginária para encobrir o real que irrompe, exigindolhe a assunção de um novo corpo. Situação ainda mais problematizada quando o Outro parental nega-se a reconhecer e legitimar essa nova imagem de “grande” e “sexuado”.
Lacan utiliza-se do “estadio do espelho” 6 para descrever como se dá a organização narcísica da criança. Através de uma relação especular e alienada com o outro, a criança se identifica à imagem que o outro tem dela. É o outro quem lhe empresta uma visão unificada e valorizada de si, enquanto completa. Uma imagem que sabemos ser ilusória e enganadora, mas necessária para que posteriormente se faça seu luto. Lacan isolou o momento de júbilo em que a criança, posta diante do espelho, aí se reconhece e é reconhecida pela mãe - constituição de um eu imaginário- ao preço de uma alienação, pois a imagem com a qual a criança se identifica é a condensação do próprio desejo materno. A criança se deixa, então, tomar pela imagem unificada e idealizada que recebe do outro, superando assim a experiência do corpo despedaçado, mas terá que atravessá-la, para que se dê a passagem do narcisismo primário para o narcisismo secundário, de um Eu ideal a um Ideal do Eu, num passe que não é de mágica, mas que suporta a dor de reconhecer não ser o objeto capaz de obturar a falta no Outro. Tempo necessário para que o eu se organize separado do outro, enquanto corpo delimitado pela pele e destacado do corpo do Outro materno, formando-se um “envelope narcísico”.
Para que um sujeito se constitua é imprescindível que deixe o lugar de objeto, mas, para deixar de ser objeto, é também essencial que um dia tenha ocupado este lugar. É a demanda materna que oferece um lugar a ser ocupado pela criança como objeto de seu desejo, através da equação falo=bebê, de modo que com seus cuidados maternos passa a banhar o corpo infantil de linguagem, inscrevendo-o simbolicamente. Nos primeiros tempos, a mãe responde quase automaticamente àquilo que supõe ser do campo das necessidades da criança, mas muito cedo se cava uma defasagem entre, por um lado, a
5 Amigo, S. Clínica dos fracassos da fantasia. RJ: Cia Freud, 2007. 6 Lacan, J. Escritos. RJ: Jorge Zahar, 1998.
dialética da demanda e do amor e, por outro lado, a da necessidade e da satisfação. É o que permitirá o estabelecimento do circuito pulsional e o ingresso da criança no campo do desejo, o qual se inscreve sempre entre a demanda e a necessidade. Se, por um lado a criança se oferece como objeto para tapar a falta do Outro, por outro lado, o movimento pulsional da mãe deve apenas contornar o objeto e deixá-lo cair, o que abre a possibilidade de separação e de corte necessários à emergência do sujeito.
Ao se submeter ao universo semântico do Outro, pois é ali que vai encontrar um sentido, a criança se coloca em posição de alienação, de afânise (ou desaparecimento), comparecendo apenas como objeto-coisa. É preciso uma segunda operação- separação- na qual o objeto cai, para instalar-se o representante pulsional no inconsciente da criança, e assim retornar enquanto sujeito. A separação é ao mesmo tempo o que produz a perda do objeto, e também o que produz o sujeito. Portanto, o intervalo necessário entre as demandas maternas é o tempo suficiente para que o objeto caia, a representação se inscreva, e o corpo se perca enquanto carne, inscrevendo-se no simbólico.
Perde-se o corpo em troca da palavra, e quando todo o corpo estiver perdido na linguagem, no simbólico, a organização narcísica e o circuito pulsional estarão funcionando ao modo do significante fálico, alicerce de uma constituição neurótica bem como de seus sintomas.
Devemos, contudo, levar em conta que o destino do ser vivente dependerá do modo como o Outro primordial se relaciona com o falo e a castração, pois é balizada pelo seu saber inconsciente que uma mulher tornada mãe encontrará a lei da castração que a impedirá de um exercício nefasto da maternidade. O gozo fálico da mãe é o que engendra o bebê nessa dialética da demanda e do desejo, e sob a garantia do (-fi), falo imaginário negativado, se dispõe à vivência da separação, da perda do objeto, para que no intervalo entre as demandas possa novamente investi-lo na significação fálica. É o que permite que a representação se inscreva e o objeto a seja perdido. Restos do investimento de gozo do Outro primordial, não especularizável e irredutível ao campo do significante e sob o qual gravitará o desejo do sujeito que advir. O sujeito, portanto, é produto desta operação que o manterá nas cordas do Imaginário, do Simbólico e do Real.
Entretanto, uma mãe pode eternizar o que deveria ser apenas um momento de gozo e tomar seu filho como objeto de tamponamento de sua falta e, em vez de introduzir sua criança numa significação fálica, a tornará prisioneira do lugar do objeto-coisa que obtura sua falta, exercendo, sem tréguas, o Gozo do Outro. Por uma disfunção do (-fi), há ausência do intervalo entre as demandas e o movimento de separação é obstacularizado. Estabelece-se, assim, uma ameaça de desaparecimento da condição de subjetivação, pois o pequeno ser não encontrará brecha para a pergunta “Che vuoi?”, “Que queres de mim?”, enigma fundamental para a instalação do fantasma original (S<>a). Desse modo, o corpo próprio permanecerá apenso ao Outro, e a organização narcísica também se mostrará fragilizada.
O que esperar desses sujeitos frente à súbita reaparição da demanda de gozo por parte do Outro, que agora assume a figura do Outro sexo na adolescência? Para alguns púberes, há um destino trágico por não encontrarem o significante unário adequadamente inscrito, e uma crise psicótica será desencadeada por não contarem com as ferramentas necessárias para elaboração do Real que impera neste momento.
Mas, devemos também pensar naquelas situações de crises subjetivas graves, que embora não sejam psicóticas, apontam para uma legítima dificuldade de assunção de seu corpo, agora transformado, e de montar uma nova vestimenta imaginária, um novo envelope narcísico que possa encobrir esse novo Real que irrompe. Como esclarece Silvia Amigo, diferentemente do que encontramos nas psicoses, nestes casos, a corda do simbólico sustenta-se no título S1 já recebido, mas que no que diz respeito à significação fálica e ao lugar do (-fi), se mostram mal traçados, dificultando o abandono dos objetos edípicos e a assunção de um novo modo de gozo.
Lembro-me aqui de alguns casos clínicos.
C., uma jovem excepcionalmente inteligente e muito estudiosa, começou a apresentar crises de pânico no momento de sua iniciação sexual com seu primeiro namorado, temia perder sua identidade, andava com endereço no bolso caso perdesse a referência de quem era, e telefonava para sua mãe buscando na voz do Outro seu próprio reconhecimento.
M., garoto educado e obediente, tinha dificuldades para usar banheiros públicos, não conseguindo se livrar de seus excrementos nas situações que julgava a permanência de
um outro a lhe esperar, se preocupava excessivamente com o que os outros pensavam a seu respeito e uma inibição sexual o impedia aproximar-se das garotas.
G., ainda buscando delimitar o fora e o dentro, forçava o vomito daquilo que comia compulsivamente, e procurou ajuda por ser a única BV(boca virgem) entre as amigas e por sentir-se feia, gorda e inadequada em sua imagem.
Casos clínicos como esses ilustram um corpo demasiadamente presente, cuja problemática emergiu diante da brusca vivência do segundo despertar sexual. Ao contrário daqueles casos em que a significação fálica garante saídas pela via do sintoma, num repertório metafórico-metonímico das formações do inconsciente, nestes casos é o corpo que mostra o que não pode ser veiculado pela palavra. Dentro e fora se confundem, dando lugar a crises de angústia ou ainda a um excesso de sentido que apaga o campo da diferença e mantém o sujeito no campo da inibição.
É preciso, portanto, que o fazer analítico possa ir além do deciframento do inconsciente, de modo a operar sobre as cordas do simbólico e do imaginário para que o Real ocupe o seu lugar e assegure ao sujeito a liberdade de se arriscar nos domínios do gozo fálico, onde sexualidade e morte conjugam-se na vida.
REFERÊNCIAS
Amigo. S. Clínica dos fracassos da fantasia. RJ: Cia Freud, 2007.
Freud, S. Três Ensaios sobre a Sexualidade ( 1905). RJ: Imago, 1986.
Lacan, J. Escritos. RJ: Jorge Zahar, 1998.
Lacan, J. Seminário X. A Angústia. Recife: Publicação interna do CEF, 2002.
Rassial, J.J. O adolescente e o Psicanalista. RJ: Cia de Freud,1999.
Silva, V.C.A. Garota Interrompida. Acessível em http:www.letra-psicanalise.com.br Xavier, E. F. A irrupção da psicose na adolescência. In: Adolescência: entre o passado e o futuro. APPOA, 1997.