SOBRE OS ANÉIS DA (DE)FORMAÇÃO DO ANALISTA

Escrito por: Valéria Codato em 12/11/2022

“Com efeito, os psicanalistas passam, porém a questão relativa à sua formação perdura”. (Harari, 2008. P.125)

Temos insistido em abordar sobre a formação do psicanalista num tempo em que vivemos a sua disseminação mais eloquente, dada a vasta divulgação promovida pelas mídias sociais que, ao enfatizarem a dimensão virtual de nossa realidade, acabam por produzir falseamentos imaginários na mesma amplitude de seu extenso alcance.


A psicanálise resistirá à sua vulgarização? Preocupação que já se encontrava em Freud sobre o que fariam de sua descoberta após sua morte. Contudo, ele não poderia calcular os efeitos subjetivos do desenvolvimento tecnológico que estaria por vir algumas décadas depois.


Vivenciamos uma tentativa persistente de reduzir a psicanálise a uma forma de psicoterapia entre tantas outras. Na atualidade, a onda do discurso capitalista tenta tragá-la, domesticá-la e regulamentá-la. Os cursos livres de psicanálise, o crescimento dos cursos de pós-graduação e até mesmo a insistência em enquadrá-la numa grade curricular de graduação, denotam a força do mercado que pretende vendê-la como um objeto de consumo. Há inúmeros estudos sobre as consequências dessa alquimia de tecnologia somada ao capitalismo para os laços sociais, para a constituição do sujeito psíquico e também para a ética da psicanálise.


Para resistir a qualquer movimento que levaria ao desaparecimento da psicanálise, se faz necessário apelar aos seus fundamentos e repetir seu ato inaugural como um ato subversivo de corte e retorno à sua origem.
Se os fundamentos da psicanálise têm sua importância, recorremos à Freud (1919) ao se dirigir aos estudantes de Medicina em torno da interrogação: “Deve-se ensinar a psicanálise na Universidade?”. Em sua resposta, encontramos “o estudante da medicina jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita. Isso, de fato, é procedente, se temos em mente a verdadeira prática da psicanálise”. Afirma, ainda, que nos bancos acadêmicos é possível que se “aprenda algo sobre e a partir da psicanálise”, mas não será suficiente para que ali se produza um psicanalista. Ideia reiterada em 1925 no Prefácio à Juventude Abandonada de August Aichorn onde Freud (p.342) afirma “a instrução teórica na análise fracassa em penetrar bastante fundo e não traz convicção”.


No texto “A questão da análise leiga”, ao defender que a psicanálise não deveria se restringir à classe médica, Freud (2021/1926, p.262) adverte-nos de que “A preparação para a atividade analítica não é tão fácil e simples como se pensa, o trabalho é difícil, a responsabilidade é grande”.


Acrescenta ainda que, na formação de um analista, devem constar estudos sobre literatura, antropologia, história das religiões e das civilizações, filologia ou ciência da linguagem e, ao indagar quem estaria qualificado para a prática psicanalítica, deixa claro que a psicanálise não estaria protegida por diplomas (médicos), mas por analistas analisados.


Ideia que também encontramos, anos depois, nos artigos freudianos reunidos como “Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” (2013/1933, p.150): “ninguém tem o direito de intervir numa discussão da psicanálise se não adquiriu determinadas experiências, que apenas mediante a própria análise podem ser adquiridas”.


Em seu retorno à Freud, Lacan afirma ter falado sobre as formações do inconsciente e não da formação do analista, para acentuar a importância da análise pessoal, do saber insabido do inconsciente que participará desse processo. É da formação de um analista que se trata. Pois, O Analista não existe (assim como dizemos que A mulher não existe). Fazem-se um-a-um, em torno de um lugar de falta – falta em ser, falta-em-ter, falta em saber. Lugar do não-todo (ou não-toda) assegurado pela operação da castração.


Lacan afirma ter falado sobre as formações do inconsciente e não da formação do analista. Evidenciava suas preocupações em não instituir uma padronização na formação de analistas, tal qual encontrada na IPA desde sua fundação – definição do número de sessões, duração da análise, escolha do analista e do supervisor feitas pela instituição – o que contraria os conceitos fundamentais da psicanálise.


O que dizer, então, dessa insistente tentativa de enquadrar a formação do analista numa grade curricular de um curso universitário ou de pósgraduação? Seria possível reduzi-la a uma prática psicoterapêutica sem com isso descartar seus fundamentos?


Sustentar a psicanálise como uma atividade leiga e ao mesmo tempo mantê-la protegida do charlatanismo e, porque não dizer, do capitalismo, não tem sido tarefa fácil desde sua origem. Estejamos advertidos: para que a psicanálise possa perdurar, recuar desse nosso legado é inadmissível!
Como afirma Roberto Harari em seu livro O psicanalista, o que é isso?:


“a psicanálise é marginal, deve ser marginal, com todo o incômodo que isso, por certo, causa a todos que queremos chamar psicanalistas. Deve ser marginal porque na medida em que o deixa de ser, o preço que paga é deixar de ser psicanalista” (Harari, 2008, p.76).


Suas indagações sobre o que são os psicanalistas, como se formam e o que fazem, evidenciam a existência de uma dobradiça entre a função e a formação, pois o que fazemos é a mesma operação da qual somos e-feito. O enlace entre formação e função se produz porque só poderá sustentar a função analista aquele que se submeteu ao processo de análise e se dispôs a um percurso de estudos teóricos e clínicos.


Eis aí o famoso “tripé da formação” tão divulgado e popularizado, e em nome do qual muitos desvios e até distorções tem acontecido no sentido de afirmar que ali esteja acontecendo uma suposta formação de um psicanalista. Pois, o tripé - análise pessoal, análise de controle (supervisão de casos) e estudos teóricos – certamente não deve ser seguido burocraticamente tal qual um protocolo padronizado para uma produção de analistas em série.


FIGURA
Proponho que essa tríade seja tomada topologicamente ao modo borromeano, ou seja, seguindo o modelo do nó borromeu ou cadeia borromeana, conforme foi utilizado por Lacan, a partir dos anos 70, para mostrar a estrutura psíquica num enodamento de três anéis – Real, Simbólico e Imaginário – que são igualmente importantes e estabelecem uma solidariedade de vizinhança entre si de tal forma que, se um deles se soltar, os demais se desenlaçam.


Há que se considerar ainda a importância do furo central – lugar do objeto a – que garante o lugar da falta em torno da qual os outros três anéis se organizam. Nessa aproximação topológica, minha proposta é considerar que, a partir do lugar central da falta, um analista se posiciona e se movimenta para produzir seu tripé – estudar, se analisar e supervisionar os casos atendidos.


Movimento esse que dependerá de um investimento que se dá para além do desejo de “ser analista”, alicerçado em recompensas narcísicas e demanda de reconhecimento, resultado de uma captura imaginária que facilmente conduz a uma prática sugestiva que se opõe radicalmente à ética da psicanálise.


Lacan designa como “desejo do analista” o dispositivo que deve guiar a operação analítica. Estejamos advertidos de que o "desejo do analista" não é o desejo da pessoa do analista, de um sujeito desejante. Embora não descarte que um analista tenha seus desejos pessoais e que não esteja fora do alcance das paixões, a proposição lacaniana é a de que haja um desejo especial que sustente a função do analista.


A passagem de um desejo de reconhecimento (desejo de ser analista) – resultante da condição imaginária narcísica que tende a eludir a falta em busca de uma imagem de perfeição – ao reconhecimento de desejo (desejo de analisar) – resultado da operação da castração, que admite a falta, o furo que o Real produz no tecido simbólico-imaginário – se dá pelo trilhamento da experiência da própria análise.


Harari (2008, p.80) nos lembra a afirmação de Lacan de que a cura vem por acréscimo, “e se vem por acréscimo, é porque nossa meta não é curar, mas investigar o inconsciente”. E, para exercer essa função investigativa, não poderá fazê-lo orientado por suas fantasias (conscientes ou inconscientes), mas a partir de um lugar des-subjetivado, lugar do des-ser ou do morto, conforme encontramos nos escritos de Lacan (1998/1958, p.595): “Mas o que há de certo é que os sentimentos do analista só têm um lugar possível nesse jogo: o do morto; e que ao ressuscitá-lo, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz.”


Se, para Freud, toda análise é terapêutica, tanto para aquele que quer se curar de algo quanto para aquele que se propõe à função de analista, para Lacan, entretanto, toda análise é didática quando levada a seu término, pois ela produzirá um analista ao promover uma mutação na economia de seu desejo, “conversão ética radical” (Lacan, 2016/1964-65, p.325) que o autorizará em sua posição de analista.


Essa mutação do desejo e também do modo de gozo que acontece no decorrer de uma análise é o que sustentará o “desejo do analista”.


Por isso dizemos que não há um curso de formação, mas um per-curso de (de)-formação! Para ocupar a função analista, é preciso que a experiência na própria carne opere uma transformação ética daquele que inicia essa trajetória sustentado em ideais imaginários, semblantes, títulos, ou ainda acossado pelo “furor curandis”, por querer fazer o bem ou ajudar o próximo. (De)-formado pela experiência da própria análise, despido de tais idealizações, um analista poderá se guiar pelo “desejo do analista” na direção da cura.


Contudo, a formação de um analista não se sustenta apenas na análise pessoal. Ricardo Goldenberg (2018, p.71), em seu livro Desler Lacan nos adverte que uma análise não resulta um analista, mas um psicanalisado, e se utiliza de um chiste para falar dessa questão: “Você cumpriu com a missão, mas ainda não é um Jedi”, fazendo alusão à produção cinematográfica Star Wars. Enfatiza, desse modo, que o exercício clínico por parte de um psicanalisado não garante que ali haja uma análise. É preciso algo mais!


Embora seja repetida aos quatro cantos a toada de que “um analista se forma no divã”, os estudos teóricos ganham importância para que a prática clínica não seja uma fraude. Também devemos considerar que a transferência o conduz a buscar uma análise de controle ou supervisão de casos clínicos, que não diz respeito à ideia de um controle disciplinar por parte de um Outro consistente. Mas é da condição de uma “superaudição” que um outro psicanalista pode despertar o “desejo do analista” que, por vezes, se encontra adormecido e impede os avanços de um tratamento. Se seguirmos a premissa lacaniana de que “não há outra resistência à análise senão a do próprio analista” (Lacan, 1998/1958, p.601), a análise de controle permitirá romper com esse ponto de estagnação do processo.

 

Freud considerava que governar, educar e psicanalisar são missões impossíveis. Sua impossibilidade recai sobre o imaginário totalizante. É justamente com a incompletude do saber e o limite do transmissível que operamos na psicanálise. O Real em jogo na formação de um analista e na transmissão da psicanálise, e que a distingue de qualquer outra proposta terapêutica que possa ser ensinada ou treinada nos bancos acadêmicos, aponta que há sempre um resto não assimilável, “que não tem governo, nem nunca terá”, na voz do poeta Chico Buarque (1976).

 

Se a psicanálise é da ordem de uma experiência singular e sua transmissão se dá pela via do Real – daquilo que está além dos ensinamentos e dos textos, intraduzível em palavras – devemos recusar firmemente a sua regulamentação e a consequente transformação de nosso ofício artesanal em uma profissão liberal.

 

Em “Alocução sobre o ensino” Lacan (1970) afirma que “a psicanálise não se transmite como qualquer outro saber”. Convém, portanto, diferenciarmos ensino de transmissão. Se o ensino diz respeito ao saber constituído, mesmo que incompleto, a transmissão se produz em ato, ou seja, é da ordem do inconsciente e que não é passível de ser ensinado. Há uma subversão na estrutura do saber que fundamenta nossa teoria e nossa prática desde suas origens.


Como preservar essa especificidade de nosso campo nos cursos que pretendem “ensinar” uma prática reduzida a uma técnica ou a um sistema psicológico contemporâneo, que identifica o sujeito como mero objeto de intervenção ou de consumo?


Podemos, então, interrogar: há formação de analistas fora da Escola? Os estudos independentes não formariam um psicanalista? Qual a importância de pertencimento a uma instituição psicanalítica?
A célebre frase de Lacan, na “Proposição de 9 de outubro de 1967” (1998/1967, p.248), “o analista só se autoriza de si mesmo” não deve ser entendida como se qualquer um pudesse autorizar-se a esse lugar. Mas que um analista só se autoriza pelo analista que se tornou!


E, ao acrescentar “e de alguns outros”, anos depois, no Seminário 21 (2016/1973-1974), Lacan busca dissolver os equívocos que a ideia do autointitular-se poderia produzir. É aqui que uma instituição tem seu lugar legitimado, onde cada analista deve dar testemunho de seu percurso, no um-a-um, em que cada um comparece como sujeito dividido, com sua falta e sem a garantia do Outro do Outro. Nas palavras de Hoffman (2019, p.45): “É a contingência do encontro com alguns outros que contribui para a possibilidade de se autorizar do ato do psicanalista”.


Harari (2008) nos adverte de que aqueles que pretendem uma “formação independente” acabam por depender em demasia de seus analisantes, numa espécie de júbilo especular, já que a única fonte de reconhecimento de sua posição de analista é o seu próprio consultório. Não querer participar de uma instituição inclui certa dose de onipotência, de recusa da castração, pois a instituição é onde a diferença se evidencia, ao colocar simbolicamente cada um no seu lugar. Segundo suas palavras:
Para que um analista se sustente em seu lugar, é necessário trabalhar com outros analistas, para não cair no defeito ou deformação profissional de nosso trabalho: a solidão autocomplacente. [...] Trata-se de um fantasma de autogeração, complementado pelo de uma autossustentação, pois é muito gratificante não render contas a ninguém do que cada um faz na solidão de seu consultório (Harari, 2008, p.140).


Mais ainda, esse autor se refere à importância do “discurso do mestre” nas instituições, enfatizando que a palavra francesa maître tem duas origens: dominus (amo), magister (mestre). Ao se pretender liquidar o discurso do mestre, crendo atacar dominus, atinge-se também magister. Esta é uma questão muito relevante nos dias atuais, em que o lugar da autoridade vem sendo atacada, degradada, vilipendiada no discurso social. Então, essa horizontalidade pretendida busca uma reunião entre semelhantes, iguais, irmãos sem pais, cujos efeitos imaginários, como sabemos, tendem a se sobrepor à ordem simbólica que, como tal, dá lugar ao Real da falta. Nesta inclinação de buscar o UM unificante da igualdade, perde-se o UM do traço que nos diferencia, num terreno onde as rivalidades imaginárias reinam.

 

Retomando o modelo que propus anteriormente, sustento que a instituição psicanalítica pode se configurar como o quarto nó na cadeia borromeana, conforme Lacan o apresenta no Seminário 22 e melhor o desenvolve no Sem.23. como aquele que teria a função de manter o enodamento sem, contudo, fechar o furo central. Função de Suplência do Nome-do-Pai que, no que pretendo argumentar aqui, fundaria uma instituição ou sociedade psicanalítica capaz de prescindir do pai com a condição dele se servir.


Uma associação psicanalítica, sabemos, não garante a formação de analistas, mas cria as condições necessárias para que o analista aconteça. Ainda devemos considerar que o inconsciente é inesgotável, portanto, a formação é interminável. Quem se aventura por esse caminho, deve estar advertido de que cada um faz sua rota sem, contudo, haver um ponto de chegada. Mas, para percorrer esse caminho, é necessário que o aprendiz ponha algo de si e esteja disposto a perder qualquer garantia de gozo. Colocar-se como sujeito castrado e a-rriscar-se, a partir do que sua estrutura RSI lhe permite.


Considero que uma formação fora da Escola ou da Instituição psicanalítica seguiria o modelo self made man ou self-service, em que cabe a cada um a escolha de fazer seu próprio percurso de estudos, de análise pessoal e de análise de controle (supervisão de casos clínicos), construindo seu tripé ao modo autônomo e livre. Sabemos que a autonomia do Eu é tão enganosa quanto a ideia de que o homem nasceu para ser livre, como pensava Sartre.


Acrescente-se a isso, o imperativo contemporâneo do imediatismo que apela para respostas rápidas, em que não se valoriza o tempo de preparo e de elaboração. Tudo deve chegar pronto e rapidamente. A psicanálise vai na contramão desse discurso, pois é preciso tempo para “per-laborar”. Reservar um ou mais horários semanais para falar de si e enfrentar o encontro com sua própria verdade, durante anos a fio, pode parecer um desperdício de tempo para aqueles que visam resultados rápidos, soluções imediatistas e seguem o lema time is money. Todavia quem adentra esse universo deve estar advertido de que não apenas um processo de análise mas também o de formação seguem a produção artesanal, aquela que demanda tempo, investimento, perseverança para que a invenção e a criação de algo novo aconteçam. É o tempo subjetivo e não o cronológico que regula essa travessia: instante de ver, tempo de compreender e momento de concluir. Aqui não há fast-food!


Eu me utilizei de expressões americanas – self made man, time is money e fast food – para apontar a tendência de pasteurização da psicanálise que devemos recusar com afinco. Sabemos do que foi feito dessa velha senhora ao se adaptar à American way of life no século passado.


É de responsabilidade de todo psicanalista fazer a psicanálise perdurar, e nos apoiamos nas palavras de Lacan (2002/1974) para quem “é preciso que a psicanálise fracasse para que ela perdure”. Pois, se a psicanálise atendesse à imperiosa demanda social de suprimir o sintoma, de anular no sujeito qualquer forma de sofrimento, nada mais teria sido que um movimento autofágico, pois ela estaria a serviço de uma economia do gozo na qual o objeto reinaria e comandaria uma cultura sem sujeito.


Finalizo enfatizando que não há titulação que possa nomear alguém como psicanalista. Então, para aqueles que pela ignorância ou pela renegação desconsideram os anéis da formação, relembro uma canção infantil bastante conhecida: “A barata diz que tem um anel de formatura. É mentira da barata, ela tem a casca dura”. Tirem as conclusões de vocês!